O comboio na literatura

>> segunda-feira, 15 de junho de 2009

Leitura puxa leitura. Impossível conviver durante uma semana com uma viagem de comboio sem pensar no que foi o comboio na nossa vida, e - principalmente – sem querer saber como se tratou o comboio em literatura.
Quem não se lembra de ter ouvido dizer, ou de ter dito, pelo menos uma vez, o “poucaterra, poucaterra”* à passagem do comboio? Quem não sentiu alguma vez um arrepio ao ouvir na noite o apito do comboio? E entre aqueles que somos leitores, qual de nós não se lembra de história, de livro, em que o comboio figura? A começar pelos livros de criança: a primeira viagem de comboio, as recomendações dos pais instalando os filhos no compartimento. E os Western? A chegada à pequena estação do destino, os assaltos ao comboio, a construção das ‘linhas de ferro´. Ainda releio com gosto ‘Desert Rails’ de L-P. Holmes, que recria um caso verdadeiro: a atribulada construção de uma pequena via férrea no estado de Nevada. E os policiais? Agatha Christie e o ‘4.50 from Paddington’, e o ‘Murder on the Orient Express’, e outros. Nos livros de Simenon, o comissário Maigret começa uma investigação com uma noite mal dormida pela agitação de um companheiro de compartimento, segue um suspeito no comboio, espera na ‘Gare du Nord’ a anunciada chegada de um homem procurado pela policia internacional. As grandes estações de caminho de ferro, com as suas impressionantes coberturas de ferro e vidro, passaram a ser um pano de fundo de muitas histórias. As de Paris figuram em muitos das investigações de Maigret. E na grande literatura? Ana Karenine reflectindo sobre a sua vida ao ritmo do rolar do comboio e por fim, procurando nele a sua via de saída. Em ‘La Bête Humaine’, Zola evoca o mundo do caminho de ferro e a história é vivida ao longo da linha Paris-Le Havre. E na literatura de guerra? Quem conhece a história da Europa Central dos últimos séculos, conhece o papel do comboio nessa literatura. Leu em histórias, memórias e romances das despedidas dos soldados nas estações, dos últimos adeus, leu da construção e reparação das vias de comboio pelos soldados especializados. Na literatura russa o comboio é uma constante, e na recente, quem não leu dos comboios levando os prisioneiros políticos e de guerra, à mistura com os criminosos, para os campos do ‘Gulag’?
Não fiquei espantada com a imensa bibliografia que existe sobre o comboio. Não me espantou também que houvesse inúmeras obras sobre a construção dos comboios, sobre a difícil implantação das estações de caminho de ferro nas cidades, e sobre todos os outros aspectos práticos da questão. Sabia também que era grande o número de obras literárias em que o comboio é o elemento de fundo, algumas eram conhecidas minhas. O que me espantou foi o grande e espalhado interesse pelo tema “o comboio na literatura”. Pensamos sempre que somos nós os únicos a ter deterrminada ideia.
Em artigo, no qual trata do impacto do comboio na moderna imaginação literária, o italiano Remo Ceserani, ele próprio autor de um livro sobre o tema, cita autores alemães, ingleses e franceses que se ocuparam do mesmo tema. Al Barton, um autor americano, resumiu o caso num seu artigo:
“O comboio tocava a toda a gente, por ser a “de facto” maneira de viajar. Nas duas guerras mundiais o comboio teve papel vital, transportando com característica eficiência bens, alimentos, cpmbustivel, armas, soldados e civis. ..............
Resumindo, o comboio era abundante fonte de caracteres, de aventura, de romance, de malandrice e de heroísmo – o material de que se constroem as histórias....................”**
E para ainda meter a minha colherada: havia evidentemente a omni presença do comboio, era o meio de transporte por excelência, tanto servia a recôndita aldeia, como atravessava os continentes. E depois havia na viagem de comboio um misto de intimidade, de aventura e de nostalgia, que não se encontrava em nenhum outro transporte. Os pequenos compartimentos de seis pessoas, três de cada lado, sentadas face a face, convidavam à convivialidade. Havia poesia nas pequenas estações de província e nas grandes estações com as suas gigantescas coberturas de vidro e aço, havia poesia nos nomes dos comboios das grandes linhas: Orient Express, Transiberiano, Simplon Express, Transcontinental. Será heresia, dizer que a viagem de comboio tinha mais de viagem do que tem hoje a viagem de avião? Parece-me que não.

O que eles disseram:
Em criança no comboio
“Quando em criança viajávamos – e desde muito pequenas que fomos sozinhas de comboio em visitas à família - íamos muito cedo para a estação para apanharmos um bom lugar. A nossa mãe sabia muito bem que ficávamos de trombas – agora dir-se-ia frustradas – se não tivéssemos cada uma o seu lugar à janela, e que haveria briga certa se houvesse só um. Eram precisos dois lugares à janela e para isso tínhamos de estar no cais antes da chegada do comboio------
Depois havia as recomendações: - comer o nosso lanche, mas não começar logo que o comboio se pusesse em andamento, não abrir as portas e de maneira nenhuma olhar pela janela em direcção da marcha do comboio, não aceitar nada de um estranho, não se deixar interrogar por ninguém, não trancar por dentro a porta do WC, melhor ficar uma de fora a tomar conta. Tudo isto dito no cais e repetido pela janela aberta do compartimento”
Heilwig v. der Mehden Schoen ist es auch anderswo

-- “De resto os seus companheiros de compartimento inspiravam confiança e não pareciam ladrões nem assassinos. Ao lado do homem que respirava com tanto barulho, estava sentada uma mulher que fazia um xale de croché. Num canto junto da janela e ao lado de Emílio um senhor de chapéu de coco lia o jornal”
Erich Kaestner Emílio e os detectives

No compartimento
--“Hasta aqui he ido solo em el departamento. En Paredes suben tres monjas, tres hermanas de la Caridad. Una es jóven, palida, escrufulosa. Otra, de mediana idad, con tes y perfil anglosaxones. La tercera a quien ambas atienden, es vieja….. Debe ser esta monja una alta autoridad en su Orden, Por lo que habla, una visitadora, que va de hospital en hospital, inspecionando los pequeños destacamentos de este exercito tan noble……..
Logo pergunta:
--Que dia es hoy?
--Dieciseis de Julio, le contestan
Y da un hondo suspiro, mira la lejania y dice:
--Pues esta mañana, a las cinco, han hecho cuarenta y nove años que sali de mi casa para ir al convento. Qué mañana!”
José OEREGA Y GASSET El Espectador

A Estação
-- “…em poucos minutos o comboio passava a desgraça da suburbia de Londres. Na carruagem, todos de alerta, esperavam o momento de escapar. Finalmente lá estavam sob o grande arco da estação, na tremenda sombra da cidade”
D.H.LAWRENCW Women in Love

-- “ Apesar da monumental cobertura de vidro, os cais da ‘Gare du Nord’ eram varridos pelas borrascas. Vidros caídos do teto tinham-se partido sobre os carris. A electricidade funcionava mal. A gente apertava-se nos agasalhos. Diante dum guichet os viajantes lia-se um aviso pouco tranquilizador: “Tempestade no canal da Mancha”
………..
“A luz amarela do comboio surgiu ao longe. Depois foi o barulho, os gritos dos ‘porteurs’, o laborioso andar dos viajantes em direcção à saída”
Georges SIMENON Pierre-le-Letton

--“ – Ambos em pé, às janelas, esperámos com alvoroço a pequenina estação de Tormes, termo ditoso das nossas provações. Ela apareceu enfim, clara e simples, à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pátio, e por trás a serra coberta de velho e denso arvoredo.. Logo na plataforma avistei com gosto a imensa barriga, as bochechas menineiras do chefe da estação, o louro Pimenta…”
EÇA DE QUEIROZ A Cidade e as Serras

O maquinista
“Jacques ............ não perdia a linha de vista, debruçando-se a todo o momento fora do vidro de protecção para melhor ver. Rudemente sacudido pela trepidação, sem mesmo ter consciência disso, tinha a mão direita sobre o manípulo da mudança de velocidades como um piloto a roda do leme. Manobrava-o com um movimento insensível e contínuo, moderando e acelerando o andamento, e com a mão esquerda não deixava de puxar o cordão do apito, porque a saída de Paris é difícil e cheia de emboscadas. Apitava às passagens de nível, aos túneis, às grandes curvas. Ao cair da noite, avistando ao longe um sinal vermelho, pediu longamente a via livre e passou como um trovão.....”.
Émile ZOLA La Bête Humaine

Guerra
16 de Julho 1870
“De repente veio a notícia que estava declarada a guerra entre a França e a Prússia…. Muita gente nas ruas, debatendo, aconselhando-se, os comboios que chegavam tomados de assalto pelos que ansiavam por ir ocupar os seus postos”
Ottilie WILDERMUTH Leben

O Quartel General do Grão Duque Nicolas na frente da Prússia Oriental
“No interior, a disposição da carruagem havia sido modificada. Entraram num escritório que ia de uma janela à outra, com o chão coberto de um tapete oriental, uma mesa de trabalho, uma pele de urso na parede, uma panóplia de armas (uma oferta), alguns icons e um retrato do soberano.”

Vorotyntsev trouxera notícias da frente, e em particular de um grave erro cometido
“A carruagem do grâo duque devia se ter erguido sobre si mesma perante tal relato, todo o comboio imobilizado devia ter entrado em transe! Mas não. Nada mudou, e um resto de chá no fundo do copo não se agitou.”
Alexander SOLJENITZYNE La Roue Rouge Acte Premier. 1914

Outros passageiros, outras viagens
“O Stolypin era uma vulgar carruagem com oito compartimentos, cinco deles para os prisioneiros, três para os guardas”.
“…, os passageiros do Stolypin distinguiam-se dos outros passageiros do comboio pelo facto de ignorarem para onde era a sua viagem e onde ela terminava…………
No verão ouviam o alto-falante: --O comboio Moscovo Ufa parte dentro de três minutos…..passageiros para Tachkent por favor para o cais número três.
Os conhecedores dos dados geográficos do Arquipélago esclareciam os companheiros: --Workuta ou Petchova não são, para lá vai-se por Jaroslaw, os campos de Kirow e Gorki também não. ……..
--O comboio para Novosibirsk parte dentro de cinco minutos. Era o nosso. Mas que queria isso dizer? Nada, por enquanto. Tanto podíamos ir para os campos do Wolga Central, como para os do Ural. Para as minas de cobre de Dacheskasgan, como para Taichet………Toda a Sibéria esperava por nós. E a Kolyma pertencia-nos. E Norilsk também.”
Alexander Soljénitsyne Der Archipel Gulag

O apitar do comboio
“A cada estação
a cada centena de dormentes
saía um poema na forma de canção
Para o doce deleite dos presentes
E lá na frente
o maquinista Marcelino
jogava lenha na fornalha”

APITA COMBOIO. 4ª parte da viagem do trem encantado de Marcelino, chegada à Costa da Caparica em Portugal
O blogue de Dirceu Marcelino

*”Penso que "poucaterra poucaterra" é uma onomatopeia, em que é imitado o som produzido pelo rodado do combóio à passagem dos intervalos entre os rails” Paulo Achmann.
** Al Barton "Fiction: The Truth Be Told."

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