Zola no supermercado*

>> quarta-feira, 24 de junho de 2009



Depois de tanto comboio, os meus leitores - poucos, mas bons, como um deles teve a amabilidade de afirmar - devem estar fartos da via férrea. Além disso, o ultimo post foi comprido demais, e os ditos poucos, mas pacientes, leitores merecem que não se lhes impinja nova litania de 1600 palavras. Pensei que era boa altura para fazer uma pausa, tanto mais que estava numa fase em que não sabia bem o que havia de escrever. Não sei se a isso se chama ‘writers block’, se falta de ideias. E com essa explicação e um pedido de desculpa me teria hoje ficado, se não fosse terem-me dito ontem no supermercado, que os guardanapos de papel, que costumavam estar junto de rolos de papel, tinham passado para a secção de papelaria. Na outra ponta da loja, portanto.
“Devem ter lido ‘Au Bonheur des Dames’, estes senhores”, pensei. Porque foi nesse livro de Zola que li pela primeira vez desse processo de promover as compras, que é fazer com que o comprador se veja obrigado a passear pela loja ou armazém. Com um fim muito especial em vista: fazer com que a cliente - era na cliente feminina que se pensava - fosse obrigada a passar diante de secções pelas quais de outra maneira não passaria, e isso a tentasse a fazer compras que não teria em mente fazer. Também me lembro do livro quando oiço falar de mulheres que têm o vício da compra, porque Zola criou em Madame Marty e sua filha Valentine os protótipos da compradora compulsiva. E também penso no ‘Bonheur des Dames’ quando se fala do arruinar dos pequenos comerciantes pelas grandes superfícies, porque é disso que o livro fundamentalmente trata.**
Cheguei à conclusão que o leitor a tendência a associar ideias a livros lidos. Porque tem um mundo próprio cheio de figuras e de situações que leu em livros. E assim, nascido prosaicamente no supermercado, encontrei o meu post para hoje.

Observações à margem:
Qual não é o leitor que não gosta de encontrar, escrita por outro, uma frase quase igual àquela que ele uma vez escreveu, ou dito com outras palavras um mesmo sentimento?
Eu tenho uma nesga de terra, metade jardim, metade horta, que criei a partir de um amontoado de lixo, e se o consegui devo-o a um artista que se ignora, um homem reformado que percebe da terra e gosta dela, que se chama António Rodrigues, e de quem muitas vezes digo que vale o seu peso em oiro. Madame de Sévigné tinha um jardim perto de Paris e um homem que trabalhava nele, que se chamava mestre Paulo, e que valia, segundo ela, "son poids d'or" “o seu peso em oiro”.
Madame de Sévigné, tal como eu, seguia com interesse as obras que lhe faziam em casa. Creio que é uma característica especificamente feminina. Artista que me venha desentupir um cano, arranjar uma torneira, colocar uma ficha de electricidade, tem em mim uma atenta companheira. Há tempos tive o senhor Francisco, um habilidoso cá do bairro, a arranjar um autoclismo. Dos antigos, que estão nas alturas. Já se vê que assisti ao trabalho, que passei as ferramentas e comentei interessada o andar da obra. Congratulei-me em carta para a minha filha pelo facto de existir um senhor Francisco empoleirado no escadote, a arranjar um autoclismo. Leio, a respeito de obras que lhe estavam a fazer no telhado da sua casa de campo, que madame de Sévigné - tal como eu segui as habilidades do senhor Francisco - seguia a obra que lhe estavam a fazer no telhado e o comentava com a filha:
"Tenho dez carpinteiros no ar, que me estão a levantar a ‘charpente’, que correm sobre as solivas, que parecem a todo o momento que vão cair, que me fazem mal ao pescoço de tanto os ajudar de baixo.”

E mais uma observação:
Quando um leitor se encontra com um não leitor, os dois quase com certeza não vão falar de livros. Quando dois não leitores se encontram, então é que, com toda a certeza, não se fala de livros. Mas quando dois ou mais leitores se encontram, a conversa, mais tarde ou mais cedo, irá dar a livro ou livros.
Depois do almoço. Presentes: a minha filha, duas sobrinhas e eu. Fala-se de jovens autoras da moda. Críticas ferozes de conhecedoras.
Por vezes a conversa caie sobre livros da infância. Peço a uma das sobrinhas que recite as primeiras linhas das "Meninas Exemplares" da condessa de Ségur - sei que ela as sabe de cor - fá-lo de imediato, e perfeitamente. A outra recorda como chorava sobre a morte de Beth nas Quatro Raparigas. Todas se riem do entusiasmo pelos livros de Max du Veuzit, o ‘máximo do vazio'.
E por aí fora. Sem grande nexo, sem pretensão a intelectualidade, por prazer. Porque todas nós, as novas e a velha, somos leitoras, e todos os leitores têm as suas particulares lembranças de leituras e as suas associações de ideias a livros lidos.
____________
*Esta artigo estava preparado para segunda-feira, dia 22, e não foi publicado devido a um problema entretanto resolvido.
**Au Bonheur des Dames é um dos 17 volumes dos “les Rougon-Macquart”, a história de uma família francesa através das mudanças sociais do século XIX. ....., o romance conduz o leitor ao mundo dos grandes armazéns, uma das inovações do Segundo Império. (Wikipedia)
Consta que Zola se inspirou para Octave Mouret, o herói do seu livro, na personagem de Auguste Hériot, um dos fundadores dos ‘Grands Magasins du Louvre’. (Wikipedia)

0 comentários:

Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

Lorem Ipsum

  © Blogger template Digi-digi by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP