Livros de Viagem. Através dos Estados Unidos no ‘Great Pacific Railroad’. Fim

>> segunda-feira, 8 de junho de 2009




“A vista de S. Francisco é feiíssima”. É essa a primeira impressão de Maria Theresa, mas depois emenda: “não percebo como, parece feio, quando não é nada. Infelizmente chegámos aqui ao meio dia por virmos atrasados imensíssimo, de modo que não pudemos ouvir missa. ............ Os ‘carros americanos’ aqui são como os de Chicago, postos em movimento como os do elevador da Glória. É muito ratão ver andar uma quantidade de carros, sem se verem puxados por animais; em geral vão dois ou três carros juntos, uns, fechados como os nossos, outros, abertos. Estes últimos têm um corredor ao meio e ao comprido onde está o homem que faz parar e andar o ‘americano’, e dos dois lados há uma linha de bancos em que se está com as pernas para a rua; percebeu a minha explicação? Metemo-nos ontem num dos abertos, e passámos por uma grande parte da cidade. ........Do ‘americano’ passámos para um caminho de ferro, que tem carros abertos e nos levou em vinte minutos à ‘Ocean Beach’ ou ‘Cliff House’.* que me fez lembrar Gibalta*pela situação. ......Em ‘Cliff House’ estava ‘le pouvoir du monde’ a ver o Boyton e as focas, que era o que nós íamos ver. Há dúzias delas, encarrapitadas nos rochedos, fazendo uma tal quantidade de movimentos com a cabeça para diante e para trás que fazem efeito de estarem a fazer cortesias. É muito engraçado.
4 de Maio 1886. Viagem à China em 3 horas. Posso dizer que estive no Império Celeste, pois quem vai ao bairro dos chineses vê a China em pequeno. ...... Fomos com o cônsul português; entrámos numa botica chinesa, conhecida do cônsul; é linda, as portas todas douradas e tudo limpíssimo. Nos tetos estão suspensas lanternas douradas por eles, ao balcão estava então o farmacêutico fazendo os seus remédios. Neste bairro não se vê senão chineses. Sabe quantos há em S. Francisco? Uns 40.000, mas vivem num espaço em que viveriam brancos em número duas ou três vezes menor, pois nós passámos por uma casa, que lhes serve de hotel, e onde estão 1000 pessoas, me parece, e onde caberiam talvez pouco mais de 100 brancos. Mas a razão é que eles em cada quarto fazem duas ou três ordens de andares e aí vivem encarrapitados uns por cima dos outros como sardinha em pilha.”
Os dois turistas tomaran chá à moda chinesa e com um chinês, que andara com eles desde a botica. “Que delícia de chá verde!” Maria Theresa fizera a operação dificílima de deitar o chá para a xícara muito bem e sem se escaldar. “apanhei um elogio do chinês, que não o fez ao papá, que se escaldou e entornou chá. .........”
No dia 4 de Maio foram ao Golden Gate Park, no dia 5 deram um passeio de carruagem com o cônsul português e a mulher, “ao todo 20 léguas, o passeio foi lindo, mas assaz cansado”.
No dia 6, os viajantes vêem fundir oiro e chumbo “A prata já tinham fundido mais cedo, mas vi-a depois em barras enormes e em tal quantidade espalhadas pelo quarto como se fossem batatas ou laranjas ou outra qualquer coisa de pouco valor. Não sei explicar como se faz, o que sei é que se deita em fornalhas em brasa e depois põe-se dentro dumas formas. O oiro depois de consolidado é uma beleza...... Tenho um bocadinho de pedra com algum oiro entremeado, que me deu um dos homens”.
No dia 7 de Maio pai e filha iniciam a viagem de regresso, vão pela linha do Sul e ainda não sabem se irão ao México. Em El Paso é que se há-de decidir.
“El Paso é uma cidade pequena que separa a fronteira americana do México. Daí partem os comboios para a cidade de México. Se o preço dos bilhetes for ao nosso alcance, iremos ver aquele país tão famoso. .......... O país é lindo, vinhas por toda a parte, sem lhe faltar uma cepa, algumas são da grossura duma árvore. Esta manhã passámos por uma verdadeira mata de cactos, principiam por aparecer pequenos, depois um pouco maiores, e pouco a pouco vêm aumentando até haver milhares do tamanho duma árvore; depois vão diminuindo até desaparecerem de todo. Chamam-se ‘Jucca’ e dão uma fruta parecida com banana. Jantámos em Los Angeles, que é bastante grande.”
Ao atravessarem o Arizona pai e filha escrevem cartas que esperam deitar no correio num local chamado "Lisboa" por onde irão passar,
Afinal a tal Lisboa compunha-se “dum barrote espetado no chão com um letreiro em que se lê ‘Lisbon’ a distância a S. Francisco tanto, a el Paso tanto etc. ....pode ser que para o futuro venha a ser um importante centro de povoação e venha a competir com a sua velha homóloga, comenta João Ferrão em carta à sua mulher, e acrescenta:
“Não foi perdido o tempo que estive em S. Francisco. Trouxe de lá informações que podem ser úteis ao nosso país...............Não se passarão muitos anos que a Europa encontre nos vinhos da Califórnia um rival tão poderoso e temível como o têm sido os trigos do Illinois e do Indiana. Na Europa julga-se que são imbebíveis esses vinhos, pois posso por experiência dizer que já os há óptimos.............”
Decidiram-se pela ida ao México “Não me permitem os meus velhos instintos de vagabundagem perder uma ocasião que talvez nunca mais me apareça. Depois de alguma hesitação pusemo-nos outra vez a caminho, aproveitando a facilidade que dão os bilhetes americanos de se parar onde se quer e todo o tempo que se quer, e não perdendo por isso os que tínhamos tomado em S. Francisco para S. Luís. As distâncias aqui são tão grandes, são tão económicas e tão cómodas as viagens, que não nos pareceu nada acrescentar mais 4000 quilómetros aos 10000 da viagem de S. Francisco............”.
Como à sua mulher decerto nada interessaria tanto como o que se referisse à filha, ele repete o que já dissera: não havia melhor companheira de viagem. “Não sabe o que é cansaço, dorme as suas 8 horas a fio e as três comidas fortes que aqui são usadas não são demais para ela”.... “o humor é sempre óptimo, nunca vi génio mais igual, com menos exigências. Quando pode, não perde, já se vê, ocasião para as orações......É impossível, repito, ser melhor e mais fina, e quando digo isto o elogio é principalmente para ti, a quem decerto os nossos filhos devem necessariamente o que são, porque a minha vida atribulada pouco ou nada me tem deixado ocupar da educação deles”.
A 20 de Maio, pai e filha estão de regresso aos Estado Unidos.
“21 de Maio 1886. Texas. Tinha tenção de escrever ontem, mas tivemos um dia tão aventuroso que não tive mesmo ânimo nenhum para pegar no lápis; mais adiante contarei o que nos aconteceu. Partimos de México (tem-me custado a decidir a dizer de México em lugar do México, mas é assim que deve ser. Falando-se do país, é que se diz do México, mas lembra-me sempre a D. Maria a dizer: “fui a palácio”) no domingo, 16, à noite, e pela mesma linha. Pelo facto de ter chuviscado um pouco, o que não acontecera no norte do México há perto de três anos, pareceu-nos o país um poucochinho mais bonito. Chegámos a El Paso na manhã de quarta-feira; de dia voltámos ao México, a El Paso del Norte, para comprarmos umas garrafas de vinho feito lá, e que o papá desejava provar. Entrámos na igreja que estava aberta e onde estavam fazendo o Mês de Maria. A igreja é pequena mas antiquíssima, o teto é de madeira escura bem trabalhada, o que são também as grades do coro, mas infelizmente pintaram-as de branco. Estava bastante gente para uma povoação tão pequena. Que tristeza, quando se pensa que na nossa terra não há uma igreja aberta de dia nem mesmo ao domingo, e que se resume o culto a uma missa de 10 minutos.
Fomos para o ‘sleeping car’ às 2 e meia da manhã........Até ontem ao meio dia não vimos senão descampado, horrendo, seco como um carapau; a essa hora teve-se aviso que estava um comboio de mercadorias descarrilado na frente; duas horas ou três era o mais que imaginávamos ter que esperar, mas faça ideia que não nos mexemos senão às 10 da noite ou mais mesmo.
Durante o dia o calor foi atroz, a seca igualmente, e a fome e sede não pequenas; felizmente tínhamos já almoçado antes, porque não comemos depois senão um pouco de presunto e pão que havia no mesmo comboio. O jantar ficou no tinteiro, pois onde devíamos chegar às 4 para jantar, chegámos à meia noite, e esta manhã almocámos às 8 onde devíamos ter chegado às 7 da manhã. Para mais ajuda, já não havia água para a máquina, de modo que também tivemos de estar à espera que viesse água de longe, e a de beber também estava esgotada. O papá foi a única pessoa que pensou em pôr água dentro duma botija pequena que levávamos, para de vez em quando beber um nico d'água e eu outro. Enfim, depois de termos esperado por tudo quanto há, que passassem dois comboios, que se arranjasse a linha etc, pusemo-nos em marcha, mas em resultado disto chegamos a S. Luís no domingo de manhã em vez de chegar hoje à tarde, sábado. ...........
22 de Maio. Arkansas. Ó maman, que beleza que tem hoje sido o dia todo e parte do de ontem! O que a maman gostaria de ver a floresta que nós principiámos a atravessar ontem ao meio dia e na qual ainda estamos! (quatro da tarde) É uma floresta virgem, a coisa mais bonita que se possa imaginar, composta de árvores altíssimas e grossíssimas, juntas umas às outras dum verde variadíssimo; várias vezes temos passado por cima de uns rios lindos com as bordas cheias de verdura da mesma mata. Não há consolação quando se pensa que daqui a uns anos talvez já não exista uma árvore, pois já estão cortando imensas para poderem cultivar a terra.
Jantámos ontem pessimamente, mas não admira muito porque não éramos esperados e comprámos ceia onde devíamos ter almoçado de manhã, e hoje almoçamos na estação em que devíamos ter ceado ontem”.
*Gibalta. Alto entre Caxias e Boa Viagem, onde a família Mascarenhas tinha uma casa.

Pedido de informação:
Alguém me sabe dizer se o “pouca terra, pouca terra”, que se dizia às crianças ao ver passar o comboio, é um simples dito popular, ou se é tirado de texto literário?

2 comentários:

Paulo 8 de junho de 2009 às 21:32  

Penso que "poucaterra poucaterra" é uma onomatopeia, em que é imitado o som produzido pelo rodado do combóio à passagem dos intervalos entre os rails.
Gostei da viagem, pena que tenha acabado.

Theresa Castello Branco 9 de junho de 2009 às 08:56  

Obrigada pela informação, Paulo. Se ler o próximo artigo - como espero - verá porque perguntei. E eu que pensava que a viagem já era comprida demais, e cortei a maior parte das impressões de S. Francisco e toda a ida ao México. Theresa

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