4) O dono do retrato de Camões

>> segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012


Um arquivo de família é, como qualquer outro arquivo, um depósito de documentos. Que neste caso são documentos que interessam àquela família. Há nele contratos de compra e venda de propriedade, contratos matrimoniais, certidões de nascimento e de morte, testamentos, inventários de bens, e, naturalmente, todo e qualquer documento que diga respeito a uma concessão de honra e às regalias materiais, que em geral as acompanhavam. Se algum membro da família exercera cargo oficial, há sem falta papéis dessa actividade no arquivo. E em todos eles surgem papéis dispares, que não parecem ter a ver com a família, e para os quais há que procurar explicação. No arquivo Ponte fui encontrando documentos referentes a propriedades que não tinham a ver com algum dos ramos da família.
Um arquivista oficial – catalogando os documentos pelo seu conteúdo - provavelmente não teria considerado notável haver papéis de gente alheia à família no seu arquivo. Mas eu não era arquivista oficial, estava interessada na história da família e, consequentemente, optara por uma arrumação dos documentos pela sua pertença aos diferentes ramos da família.
Quando me vi com inúmeros papéis de uns senhores chamados ‘Gomes da Silva e Brito’ e outros chamados ‘Mascarenhas Homem’ percebi que aquilo não tinha a ver com a nossa família. Pois foi entre estes papéis que encontrei a menção do retrato de Luís de Camões.
Aqueles documentos tinham pertencido a uma senhora chamada Inês Josefa de Castro, que fora casada com José Gomes da Silva e Brito, e, em segundas núpcias, casada com Luís Saldanha da Gama, de quem por sua vez era segunda mulher. Quando casou com Luís de Saldanha, D. Inês trouxe consigo os papéis do primeiro marido (os Gomes da Silva e Brito) e, naturalmente, os da sua própria família.
D. Inês era filha de Gregório Mascarenhas Homem e D. Isabel de Sousa, vindo a ser, por morte de um único irmão, a herdeira universal de seus pais. O pai morre em 1650 e, tendo deixado filhos menores, houve que abrir um processo orfanológico (creio que é assim que se diz). Para tal fez-se um primeiro apanhado dos bens de Gregório Mascarenhas Homem. O processo definitivo, com a avaliação dos bens, foi feito posteriormente, e sabe-se que estava no cartório de Francisco Madureira Cardoso, escrivão dos órfãos da cidade de Lisboa. Não procurei esse inventário, refiro-me, sempre ao apanhado acima mencionado. É um documento de 15 folhas intitulado: “Rol das coisas que há nesta casa da senhora D. Isabel de Sousa para se declararem no inventário que há-de fazer-se”. O rol não é datado, mas deve ter sido elaborado logo após a morte do Dr. Gregório, portanto ainda em 1650.
A fl.5 e 5v do rol encontram-se enumeradas as seguintes obras de pintura: “seis painéis de fábulas, mais um painel grande com moldura da deosa Venos (sic), o retrato do senhor Vasco Fernandes Homem, o retrato do senhor D. Rodrigo de Castro, o retrato da rainha D. Catarina, o retrato do Camõens (sic), um paiinel de uma fábula. Um pouco abaixo, a obra estaria em outra divisão, mencionam-se ainda “cinco painéis de penturas (sic) de framengos compridos”, dois mapas, mais três painéis mais pequenos de pano pintado..”
Existe uma lista de legados posteriormente deixados por D. Inês a várias pessoas, e uma lista de objectos seus que se venderam para pagamento de despesas, em nenhuma dessas listas figura o retrato de Camões. Este retrato, bem livre e pessoal de D. Inês, não foi por ela legado, e não foi vendido pelos testamenteiros; passou sem sombra de dúvida para o seu enteado e herdeiro João Saldanha da Gama, e deste para seu filho, o 4º conde da Ponte. A filha única deste, D. Leonor Saldanha da Gama, herdeira do título, é 5ª condessa da Ponte. Casa com José António de Saldanha e Sousa, que encontra o retrato de Camões em casa de sua mulher, o aprecia, e escreve no verso – erradamente como se viu – que o quadrinho pertencera ao marquês de Sande.
Na realidade o retrato pertencera a Gregório Mascarenhas Homem, filho de Estevam Homem da Silva Gago e D. Inês de Castro. Era neto materno de D. Rodrigo de Castro e paterno de Vasco Fernandes Homem.
Gregório Homem ocupou de 1634 a 40 interinamente o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo, foi desembargador da Casa de Suplicação em 1642, e no mesmo ano deputado canonista no Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens. Em 1644 é nomeado contador mor das contas do Reino e Casa da cidade de Lisboa, sucedendo ao Dr. João Pinto Ribeiro. Foi familiar do Santo Ofício, fazendo para isso as suas provas em 1647. No alvará pelo qual D. João IV recompensa a viúva e filhos do Dr. Gregório pelos serviços deste, o rei enumera os numerosos cargos em que este o servira, fora, cito: “outros negócios de grande importância e segredo de que foi encarregado”.
Se o Dr. Gregório tinha o retrato de Camões junto dos retratos dos seus avós era decerto porque o apreciava. Mas o mesmo talvez não se desse com sua mulher. D. Isabel de Sousa enumera os retratos que o marido possuíra, identificando com grande respeito todas as personagens retratadas, com excepção do grande poeta. Temos o retrato da rainha D. Catarina, o retrato do senhor Vasco Fernandes Homem, o retrato do senhor D. Rodrigo de Castro, o retrato do Camões.
Ignora-se se foi por herança, ou de outra forma, que Gregório Mascarenhas Homem obteve o retrato. A hipótese de herança parece-me possível. Como tentarei demonstrar.

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