VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº V UMA INSTITUIÇÃO ARISTOCRÁTICA

>> terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O ideal do monacato, ideado por homens para homens, inspirou mulheres de fé a seguir o exemplo. Nasceram pequenos cenóbios de mulheres vocacionadas para a severa vida ‘em religião’, rezando e trabalhando. Por aí devia e podia ter ficado, se a sociedade civil não tivesse descoberto e usado o mosteiro para seu uso particular. Os mosteiros abriram as portas a postulantes,que para lá entravam - ou para lá eram enviadas - sem vocação, e por razões puramente materiais. Os reis descobriram a utilidade dos mosteiros para arrumar uma princesa a quem seus pais não conseguissem casar à altura da sua condição.

Maria de Aragão e Castela, Rainha de Portugal
No seu testamento, a rainha D. Maria, segunda mulher de D.Manuel, pede ao marido em espanhol aportuguesado, que ele procure bons casamentos para as filhas, e que, caso não o consiga, que as meta freiras, mesmo contra sua vontade: “Suplico al Rey meu senhor, que a nossas filhas em ninguna manera não las case sinon con Reis e filhos de reis legitimos, e quando esto non possa ser, que as meta freiras, ainda que elas non quieran, porque melhor serviran a Dios, que não casalas en el reyno, e bien lo sabe Sua Alteza quantas fortunas tiene pasadas sua hermana por casar en el Reyno y a elas ruego e peço, que non casen senon como aqui digo, ainda que Sua Alteza se lo mande sob pena de minha bênção". Mosteiro nesses moldes eram uma aberração. Aberração que proliferou e se manteve durante séculos.

Antes de ser aceite, a jovem candidata a professa no mosteiro era examinada quanto a qualidades morais, intelectuais e físicas. E atendia-se discretamente ao dote que dela se podia eventualmente esperar A Regra de São Bento partia do princípio, que um convento possuiria bens suficientes para sustentar a sua comunidade. Pelo que, idealmente, não seria requerido dote. São Bento não pudera prever a avalanche de mulheres que os próximos séculos iriam levar para os mosteiros. O dote era agora uma necessidade. Não se podia exigir à futura religiosa contribuição em dinheiro, mas nenhuma abadessa em seu pleno juízo recusava uma terra, um pomar, uma casa na cidade, que os pais quisessem oferecer à filha que entrava em religião. A monja era dona dos bens que trouxera em dote, subentendendo-se que estes seriam por ela legados ao mosteiro, ou doados em vida a outra monja, que por sua vez disporia a favor do mosteiro. Foram muitas as terras que Lorvão herdou das suas monjas Em 1260, a abadessa de Lorvão afora um casal em Vila Quebrada, vila que depois, como lemos, se chamaria da Cerveira, com a menção de que este casal fora de Estevania Rodrigues, sua monja. Em 1264, a abadessa dona Marina Gomes, uma Briteiros, troca com João Rodrigues de Briteiros uma terra que fora trazida para Lorvão por outra Briteiros. Em 1272, os visitadores de Claraval, que estavam então em Portugal, tiveram de conciliar as abadessas de Lorvão e de Arouca, que disputavam para os seus respectivos mosteiros os bens de uma monja que de Lorvão, fora para Arouca. Em 1291, Estevaninha Vasques, monja de Lorvão, faz partilhas com seu irmão Fernão Vasques de Figueiredo, e por ela irão ficar a Lorvão dois casais que então herdara. Em 1311, Pedro Afonso Ribeiro doa a Aldonça Pires ‘dona confessa do mosteiro de Lorvão’, uma almuinha no termo de Coimbra, ao pé do mosteiro de São Francisco. Almoinha que, depois de sua morte, ficará ‘sem contenda nenhuma’ para o mosteiro. Por almoinha entendendia-se, segundo Viterbo, uma ‘horta fechada sobre si, terra de pomar, parreiras e hortaliça, frutos, ervas e árvores que servem de matar a fome’. Outra almoinha perto de Coimbra vem parar ao mosteiro pela monja Urraca Pais, filha de Pedro de Molnes. Outra almoinha ainda, denominada de São Lourenço, que em 1317 era já de Lorvão, viera para o mosteiro por morte de Dona Maria Afonso. Em 1326, Gonçalo Pires doa a Guiomar Gomes a sua quinta do Carapinhal no termo de Mortágua, e por morte da dita Guiomar Gomes, a quinta fica para Lorvão O mosteiro tinha propriedades na Pampilhosa, em Cernadelo, em S.João de Loure, em Urgães perto de Tomar, em Carnide junto de Lisboa, tudo herdado de monjas suas. No termo de Tábua as monjas de Lorvão tinham a quinta da Portela, que fora dos Cunha, e na Rebordinha em Coimbra tinham mais ainda.

A coisa não podia durar, os reis não viam com bons olhos o enriquecimento dos mosteiros em detrimento dos particulares. Foram, promulgadas leis, proibido a aquisição de bens de raiz por parte de religiosos e mosteiros, assim como doações e disposições testamentárias a favor de institutos religiosos. Lei que os reis frequentemente ajudavam a violar. Em Lorvão dar-se-ia disso um flagrante exemplo. Uma certa Maria da Panha, ‘dona filha dalgo e de bom logo’ tinha ‘muitas herdades e bens’, que desejava dar em vida a sua filha, dona Guiomar, monja em Lorvão. Eis se não quando D.Diniz resolve promulgar a lei proibindo as monjas de herdarem bens de raiz. Dona Maria da Panha não vacila. Entra também ela como monja para o mosteiro de Levando trazendo consigo todos os seus grandes bens. Pede ao rei - conclui-se que o fez em pessoa – que fosse permitido a sua filha herdar esses bens. D.Diniz, atendeu o pedido, ‘fez-lhes graça e mercê, e permitiu que os seus bens ficassem a sua filha, e, consequentemente, dela passassem a Lorvão. Os bens de dona Maria da Panha estendiam-se por montes e vales, com terras e casas em Paredes de Gestaçô, em Sobrado de Paiva, em Linhares, e de lá até à Guarda, em Torres Vedras e em muitos outros sítios.

Os mosteiros de mulheres não foram entusiasticamente aceites pelas Ordens. Mas era escusado protestarem. À cabeça dos mosteiros de mulheres estavam abadessas de grandes famílias, mulheres influentes que eram ouvidas na Corte por elas, ou, se necessário, por alguma das monjas que tivesse laços de família com a personagem de quem podia depender uma decisão importante. E os soberanos, que periodicamente se insurgiam contra os ditos mosteiros, fundavam outros. Odivelas foi fundação de D. Diniz. Seu filho bastardo, D.Afonso Sanches, fundou o mosteiro de Santa Clara em Vila do Conde, deixando uma verba destinada a lá manter duas religiosas, que tinham por missão rezar por ele e por sua mulher. O exemplo dos reis foi seguido por famílias nobres, fundando pequenos mosteiros nas suas terras, ou perto delas, colocando neles as suas filhas para que rezassem pelos pais e lhes alcançarem o perdão das suas culpas. Em geral reservavam para si o direito de lá se hospedarem. O que faziam com tal frequência e tanta demora que acabavam por ser a ruina da sua própria fundação

Grandes ou pequenos, os mosteiros medievais de mulheres foram necessariamente instituições aristocráticas. Para a rapariga nobre, era ‘desonesto’ não era aceitável, exercer uma profissão. Casava, ou à falta disso, entrava em religião.

Nas famílias de mercadores e obreiras na cidade e no campo, o problema não se punha. Se as filhas não encontravam marido, não lhes faltavam ocupações e profissões que podiam exercer e exerciam. Na cidade, as filhas dos pequenos comerciantes e artesãos trabalhavam, vendendo e fabricando. No campo, as filhas ajudavam os pais nos trabalhos da lavoura. Se não casava, era mais um braço para trabalhar. E havia, então como sempre, os trabalhos domésticos, em casa, ou para fora.

Houve alguns conventos abertos às famílias da alta burguesia. O mosteiro de Chelas, da ordem de São Domingos, junto a Lisboa, foi por excelência, e, pelo menos, até à primeira metade do século XV, convento das filhas da alta burguesia lisboeta.

A classe dos mercadores ricos e os altos magistrados rivalizava com a fidalguia, possuidora de bens patrimoniais nem sempre muito produtivos. Essa gente de dinheiro e de letras não tinha grande hipótese de colocar as filhas em mosteiro fundado, ou há muito dominado, pela alta nobreza. Teve em Chelas o seu convento. Encontram-se entre as suas religiosas filhas de magistrados, como as Alvernazes, filhas e sobrinhas de grandes mercadores, uma das prioresas era sobrinha direita do riquíssimo João Palhavã. Há em Chelas filhas de famílias estrangeiras estabelecidas em Lisboa, como as Reineis e as Donteis. Chelas abria as portas a mulheres viúvas, e a mulheres separadas de seus maridos. Chelas é um curioso caso, talvez um dos mais interessantes mosteiros português, e, para a história de Lisboa, uma mina de informações. Mas quando se fala de vida monástica feminina no Portugal medieval, está-se falando dos grandes mosteiros, fundados pelo rei ou por membro da família real. Está-se falando de Arouca, de Celas, de Santa Clara de Vila do Conde, e, evidentemente, de Lorvão, o nec plus ultra em mosteiro de mulheres.

Os superiores das Ordens tiveram cedo consciência dos problemas inerentes à vida em comum de muitas mulheres. A mulher é mais suscetível que o homem, irrita-se mais que este com modos e maneiras do seu semelhante. A irritação podia tomar proporções explosivas. Em consequência, na admissão de uma religiosa olhava-se muito à condição física da candidata. O defeito físico podia incomodar, meter nojo e causar grandes problemas. No mosteiro da Madre de Deus de Lisboa foi muito discutida a entrada de uma noviça, natural da Guarda, por as religiosas não lhe poderem avaliar a condição física com os próprios olhos: ‘nos pareceu em os primeiros combates cousa ridícula tomar uma mulher de setenta ou oitenta léguas daqui, de quem não podíamos saber se era torta ou aleijada, ou alguma selvagem, que é ainda pior aleijão".2 Em Lorvão não encontramos menção de mulheres aleijões, ou surdas, ou com outro defeito físico incomodativo, mas encontram-se numerosos casos de irmãs gémeas, o que no tempo era considerado uma anormalidade, mas não um defeito incomodativo.

Requeria-se também que as monjas tivessem boas maneiras e uma razoável cultura para que não se incomodassem umas às outras. O ensino de boas maneiras era tomado muito a sério, seguindo com variações pontuais a regra que Santo Agostinho redigira para a ordem fundada por sua irmã. Para poder haver um relacionamento pacífico e agradável das religiosas entre si, Santo Agostinho recomendava que a mestra de noviças instruísse a jovem professa nesse sentido. Além de ensinar a ler às que não o sabiam - o que era a maioria delas - a mestra devia informar as noviças dos costumes do seu mosteiro e incutir-lhes modéstia e boas maneiras. Devia admoesta-las a que não se gabassem de parentesco com pessoas graves, ‘nem se jactem de fidalguia ou nobreza da sua geração’. E que não se ‘ensoberbeçam com as honras do século, ou riqueza dos pais, ou parentes.’ ‘E que as ricas ponham em comum o que tenham; as pobres não queiram ter no mosteiro o que não tinham fora dele. E que as pobres não se enalteçam por ter trato com aquelas às quais lá fora se não atreveriam a chegar´.

 
Santo Agostinho

Os séculos não apagaram o valor dos preceitos de Santo Agostinho sobre a melhor forma de viver em comum, ‘em sociedade’, e a sociedade civil adoptaria gradualmente para si alguns dos preceitos de ‘boas maneiras’ estabelecidos para religiossas.

A par de disciplina religiosa, a noviça aprendia regras de comportamento. Às monjas de um mosteiro inglês era ensinado que, à mesa, as religiosas não se deviam encostar com os cotovelos, não deviam comer de boca aberta, não deviam escolher para si os melhores bocados Nos mosteiros alemães havia igual preocupação com boas maneiras. Na Alemanha o ‘Novizenspiegel4, ou “Espelho de noviças”, recomendava à noviça: que não coma com a rapidez da gula, como se receasses que não chegasse para ela. Que não se inclinasse sobre a comida, que não olhasse em redor para ver se não haveria outra que tivesse mais e melhor que ela. Ao sentarem-se, as monjas deviam fazê-lo bem direitas, segurando as extremidades dos seus mantos ou cogula, dizia-se às monjas inglesas. Nos locais de silêncio deviam manter as mãos nas mangas da cogula. Não deviam estender demasiado as pernas nem cruzar os joelhos, um sobre o outro. Deviam cobrir os pés honestamente sob as suas vestes e não brincar com eles. Quando sentada entre duas companheiras, a monja devia fazê-lo de modo a não ter a cara virada só para uma, ou só para a outra das suas vizinhas, e não estar de costas viradas para uma ou para outra, nem virando a cabeça alternadamente de um lado para outro. E nada de sonoras gargalhadas. A mestra das noviças devia ensinar as suas pupilas a ‘não serem fáceis em rir, e menos com risos acompanhados de vozes altas.’, A religiosa ‘não devia rir em demasiado nem a despropósito”, ensinava-se também às inglesas. Contudo, caso o soberano, ou alguma das irmãs mais idosas, rissem, a brincar, de alguma outra irmã, ou irmãs, então, ‘cortesmente, por amor à qualidade, deverão sorrir ou rir modestamente também’.

 O estar de pé também tinha os seus preceitos. Não se devia estar só sobre um pé, com o outro encostado, nem com um cruzado sobre o outro, diziam as mestras inglesas a suas pupilas. A monja manter-se-ia em pé, direita, ligeiramente encostada na cadeira do coro, com as mãos diante de si, dentro dos mantos ou das mangas da cogula.

O andar não devia ser de cabeça no ar, recomendava-se às monjas portuguesas, mas sim ‘com os olhos postos em terra e as mãos recolhidas debaixo do escapulário ou dentro das mangas do hábito junto à cintura’.

Quando professava - com a pompa devida, com ofício religioso próprio - a noviça fora ensinada a ler, escrever e cantar, e estava formada em boas maneiras. E -idealmente - não irritaria as suas companheiras.

 


0 comentários:

Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

Lorem Ipsum

  © Blogger template Digi-digi by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP