VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº VI AS ABADESSAS

>> quarta-feira, 27 de janeiro de 2016


As abadessas dos grandes mosteiros eram personagens importantes na sociedade medieval, ‘mulheres de considerável posição social, habituadas ao poder e gostando de o exercer’, assim define W.M. Labarge as superioras dos mosteiros no seu livro sobre as mulheres na Idade Média. ‘Pessoa importante não só no seu próprio convento, como no mundo exterior. Era vizinha, senhoria, e filantropa nas vizinhanças da sua casa’, escreve a mesma autora. A autoridade da abadessa exercia-se com efeito, não só sobre as suas religiosas, como sobre a gente que vivia em torno e nos arredores do mosteiro. Mais longe até, em toda a parte onde a casa monástica possuía terras e bens. Quanto maior e mais rico fosse o mosteiro, maiores eram a posição e a influência da sua superiora. No caso das abadessas de Lorvão, que eram senhoras donatárias de várias vilas, e com jurisdição própria em algumas delas, que apresentavam os párocos em numerosas igrejas, que eram donas de inúmeras terras das quais podiam dispor, arrendando-as ou aforando-as, e de quem dependia uma infinidade de gente ligada à administração dos bens monásticos, pois dessas senhoras facilmente se entende que, na região conimbricense, só o bispo de Coimbra e, talvez, o Prior de Santa Cruz, tivessem maior posição e influência que dona abadessa de Lorvão.

Naturalmente, também se esperava de uma abadessa, que ela, como cabeça do seu mosteiro ou, em determinados casos, pela influência da sua família, obtivesse benesses para o seu mosteiro, que protegesse à sua gente, e que estendesse, se necessário, a sua protecção a outros, impondo-se aos bispos e outros grandes senhores e, se necessário, ao próprio soberano. As abadessas de Lorvão fizeram-no frequentemente. Em 1288, ao arrendar uma propriedade do seu mosteiro aos frades de Santa Cruz, a abadessa dona Maria Joanis promete, no contrato que firma com os frades crúzios, que, no caso de o rei vir de qualquer forma a incomodar os frades, ela, abadessa, e seu convento, os protegeriam com as suas cartas e privilégios e à sua custa, ‘per nostras literas, cartas, privilegius et expensas debemus vobis defendere...’.1

Dois séculos mais tarde, a influência da abadessa de Lorvão ainda era tão reconhecida que, em 1416, um tal Afonso Peres não hesitava em dar à abadessa dona Mécia Vasques da Cunha, para ela e seu convento, uma ‘marinha de fazer sal’, com a condição de ela e as suas sucessoras tirarem, ou fazerem tirar, o dito Afonso Peres da vintena do mar ‘em que se é posto por galiote, e não o podendo tirar da dita vintena, e havendo aqui armadas algumas assim de el-rei como doutras quaisquer, a que o dito Afonso Peres seja chamado, que a dita Senhora e as suas sucessoras sejam teúdas a o tirar e livrar das ditas armadas.’ 2

A influência da abadessa seria naturalmente tanto maior quanto ela, para além do seu cargo, fosse influente devido às suas ligações familiares, que fosse pessoalmente conhecida das pessoas altamente colocadas.

E assim, ao tentar estabelecer a lista das primeiras abadessas de Lorvão, parti do princípio, que havia que as procurar entre a primeira nobreza do seu tempo. E mais, tinha a convicção, que elas seriam de preferência membros daquelas famílias que gozassem então de maior prestígio e tivessem mais influência na sociedade coeva. Conjugando e comparando os dados dos Livros de Linhagem e as informações dos documentos, foi possível estabelecer, com razoável certeza, a filiação das primeiras abadessas, e provar que todas elas tinham de facto pertencido à primeira nobreza do reino. E que, sem excepção, eram filhas de homens de grande nascimento, com influência pessoal na Corte, e que, na sua maioria, eram homens de posses.

Dona Sancha, a que reputo por segunda abadessa de Lorvão, tendo sucedido à abadessa Vierna, era uma Sousa, filha de D. Gonçalo Mendes de Sousa, que, na primeira metade do século XIII, era chefe da linhagem dos Sousas, e foi em Portugal um dos homens mais poderosos do seu tempo.

Dona Maria Afonso, a terceira abadessa, que, tal como a primeira, viria do mosteiro de Gradefes em Leon, era de extracção real, neta de D. Sancho I, pela sua mãe D. Teresa Sanches. A sua sucessora, dona Marina Gomes, era uma Briteiros. Eleita já depois da morte da rainha D. Teresa, seria a primeira abadessa a sê-lo sem a intervenção da padroeira do mosteiro. Era filha de Gomes Mendes de Briteiros, e pertencia a uma família que se encontrava em franca ascensão social, apoiada nos Sousas, a quem estava ligada por laços de amizade e de parentesco. Dona Marina Gomes foi sucedida por uma prima sua, dona Urraca Rodrigues, filha de Ruy Gomes de Briteiros. Às duas Briteiros, sucede de novo uma Sousa, a muito rica dona Maria Anes, filha de D. João Garcia de Sousa, senhor de Alegrete por sua mulher. Em fins do século XIII, depois de sessenta anos de governo de Sousas e Briteiros, as religiosas de Lorvão elegem finalmente uma abadessa que não pertencia a nenhuma dessas famílias. Trata-se de dona Constança Soares, filha de D. Sueiro Anes de Paiva. Eleita em 1290, o seu abadessado duraria até 1317. Segue-se-lhe no governo de Lorvão uma filha dos Porto- Carrero. Governou até cerca de 1332, sucedendo-lhe de novo uma Briteiros, Dona Teresa Mendes, filha de D. João Rodrigues de Briteiros e de D. Maria Annes. Esta abadessa introduziria em Lorvão o ‘selo do convento’, que representava a totalidade das religiosas. Dali em diante os documentos notariais seriam- como veremos - legitimados com o selo da abadessa e com o selo do convento. A abadessa seguinte dona Guiomar Fernandes de Panha, foi a primeira das abadessas de Lorvão a usar apelido e patronímico. Rica, administrando ela própria os seus bens, é talvez a esse facto que ela deveu a sua eleição. Não pela ascendência familiar, que era relativamente modesta para a bitola de Lorvão. Dona Guiomar morreu, lê-se ‘no ano da ‘peste grande’, em 1348 ou pouco depois, aparentemente vítima dessa epidemia. Menciona-se que o mosteiro foi então temporariamente regido por uma regedora, e, em seguida, por uma dona Grácia, que provavelmente também foi regedora, seguindo uma abadessa, que deve ter sido igualmente vítima da peste. Fora de novo uma Sousa. Em l395 entramos no período dos abadessados de Cunhas e Eças. A partir desse ano e até 1468, sucedem-se primeiro, quatro abadessas da família Cunha, todas próximas parentes umas das outras. A primeira é dona Mécia Vasques da Cunha, filha de Vasco Martins da Cunha. O reinado das Eças, que seguiu ao das Cunhas, contou unicamente com duas abadessas, mas entre a primeira, dona Catarina d’Eça, e a sua sucessora, dona Margarida d’Eça, Lorvão esteve em mãos de Eças de 1468 a 1537.

A eleição da abadessa era um ponto alto na vida do mosteiro. Assunto do maior interesse para todo o convento, as monjas não seriam humanas se não começassem a pensar na sucessão da sua prelada ao primeiro sintoma de enfraquecimento ou de doença. A abadessa não teria ainda exalado o último suspiro, e já havia decerto uma ou mais candidatas ao grande cargo, e a campanha eleitoral estaria em pleno curo. As religiosas que tinham condições de ser eleitas, tinham suas adeptas - seus partidos -, e não lhes faltava o interesse de parentes e familiares. Ter uma sua parente à testa do poderoso mosteiro de Lorvão não era pouca coisa.

A organização e preparação do acto eleitoral após a morte de uma Abadessa, competia à Prioresa, a religiosa que ocupava o segundo lugar na hierarquia do convento. Ela substituía de imediato a defunta prelada, e o primeiro acto da sua administração era a notificação da morte de Dona Abadessa ao bispo da diocese e ao abade do mosteiro do qual o seu dependia. No caso de Lorvão eram notificados o bispo de Coimbra e o abade de Claraval. A partir do século XV, passou a ser notificado também o abade de Alcobaça. Ao Bispo avisava-se unicamente por cortesia. Era do abade de Claraval e, posteriormente, do de Alcobaça, que viria a autorização para se proceder à eleição da nova abadessa.

A eleição realizava-se na Sala do Capítulo, estando presentes todas as monjas. Iam escolher aquela entre elas que, de ali em diante, e até à sua morte, as ia governar. Todas elas, da mais nova à mais velha, tinham direito a voto. Depois de um cântico implorando a inspiração do Espírito Sant procedia-se à votação. Era voto secreto, um voto por pessoa. Admitia-se a eleição ‘por inspiração’ ou ‘por aclamação’, quando alguém propunha um nome, e este era aceite por unanimidade e aclamado por todas. Uma cartorária do mosteiro que, no seculo XVIII, escreveu o ‘Livro das Preladas’, não recorda caso desses em Lorvão.
Uma vez a eleição concluída, e a abadessa eleita, eram de novo avisadas as mesmas autoridades eclesiásticas. Sem a sua aprovação, a eleição não era canonicamente válida. Tudo isto levava tempo, e sucedia, se bem que não fosse muito vulgar, que o bene-placit não fosse concedido, tendo de se proceder a nova eleição. Sucedia também, e isso, sim, era frequente, haver discórdias entre as monjas quanto à eleição, com violentas disputas e com as diferentes facções querendo impor a sua candidata. Não há testemunho de disputas nas eleições em Lorvão nos primeiros anos. Ou porque na realidade não as tivesse havido, ou, o que é mais provável, por ninguém se ter dado ao trabalho de as anotar. Uma disputa sucedida no século XVII ficou registada. A autora do ‘Livro das Preladas’ escreve a esse respeito, que, querendo fazer eleição, houvera tais bulhas, que o mosteiro estivera nove meses sem abadessa, e que no fim deste tempo ‘para aquietar as oretialidades (sic) viera em Maio dona Francisca de Vilhena, freira de Celas’.

As cistercienses fixavam prudentemente, a idade das candidatas a abadessa, em trinta anos, e cinco de profissão. A duração da sua prelazia era para a vida, eram abadessas ‘perpétuas’. Uns sistemas que seria alterado com as reformas do século XVI, as abadessas passarão a ser trienais, ou seja, eleitas por três anos.

Idealmente a escolha deveria obedecer aos sábios preceitos da Regra de São Bento, e as eleitoras, inspiradas pelo Espírito Santo, considerariam sobretudo a competência e as virtudes da candidata. Tudo indica que a realidade era outra, que a eleição obedecia mais do que seria de desejar a considerações de ordem material e a influências externas. ‘Grandes senhores usavam da sua influência e do seu dinheiro para conseguirem o ambicionado posto para alguém da sua família, e a própria candidata não era avessa a untar as mãos das influentes, ou a pedir apoio no exterior’, escreve Eileen Power no seu livro sobre os mosteiros de mulheres em Inglaterra. Os autores coevos insurgiam-se particularmente contra as influências exteriores, contra as abadessas de ‘sangue’, impingidas pelos seus familiares, e contra as abadessas ‘simoniacas’, que tinham conseguido a eleição com dinheiro ou à custa de benesses prometidos. Excepcionalmente houve casos de abadessas de gestão, designadas para gerir o mosteiro em época de guerra ou devido a problemas de administração, ou por imposição exterior. Em Portugal verificar-se-ia isso sobretudo no século XVI, quando da luta travada entre D.João III e as ordens monásticas, pretendendo o. Rei ser ele a nomear as abadessas dos grandes mosteiros. Adiante se dirá da luta épica que nasceu dessa pretensão com particular acutilância justamente com Lorvão. Nos séculos anteriores não há memória de intervenção real tão violenta, se bem que tanto os reis como os bispos tentassem periodicamente impor as suas vontades às monjas, e influir directamente nas eleições das suas preladas. O que em geral não conseguiam, porque as religiosas protegiam com afinco o direito de elegerem elas a sua abadessa, e não hesitavam em se queixar ao Papa, quando esse, ou qualquer outro dos seus privilégios, estivesse ameaçado.
O Selo abacial

 Logo que canonicamente confirmada, a nova abadessa tomava conta do seu cargo. Recebia o báculo, o castão do pastor, que marcava a sua autoridade, e era-lhe entregue o selo abacial.
 

No seu hábito, a abadessa não se distinguia das outras religiosas. Aliás o hábito pouco se distinguia do traje mulher da classe média vivendo no mundo. Um notário que, em fins do século XIII, descrevia o selo da abadessa de Lorvão, diz, que se via no selo ‘uma figura de mulher com uma baga na mão destra’ 3 

 
Em outro documento lê-se que no selo se via uma ‘mulher ou uma abadessa’. O hábito da religiosa era nas suas peças quase igual ao da mulher que vivia no mundo: Vestia camisa e cogula, e cobria-se com um véu. Para os frios usava manto. A simplicidade no hábito manteve-se na maioria dos mosteiros, mas em alguns as religiosas conseguiram furar o tabu. Exemplo é Arouca, onde as monjas, decidiram no século XVIII, dar uma nota de elegância mundana ao seu hábito.



A abadessa era senhora absoluta no seu mosteiro, mas isso não impedia que, em todas as decisões graves, ela tivesse de se submeter à prévia consulta e ao voto e da sua comunidade, do seu ‘convento’. Em questões menores podia aconselhar-se unicamente com as mais velhas, as anciãs, e as oficiais. Em caso de vulto a abadessa tinha – como se disse - de ouvir ao convento na totalidade, e os contratos tinham de ser feitos com o consentimento de toda a comunidade. O documento frisava sempre que assim sucedia, que o convento dava o seu consentimento. Não punha o seu selo, acrescentava-se, porque na Ordem de Cister o convento não tinha selo, “conventus ad Lorbani sigillum non apponitur quod non est de ordinem Cisterciensem quo sigillum habet”.5 A criação de um selo conventual em Lorvão no tempo da abadessa dona Teresa Mendes iria permitir dali em diante um controle mais apertado das medidas arbitrárias da abadessa, nenhum contrato sendo válido sem os dois selos, o abacial e o conventual.

Os selos  abacial e o conventual
O novo selo era uma ajuda contra as arbitrariedades da abadessa - de todas as tentações do seu cargo, a de governar autocraticamente seria talvez a maior - mas não as evitaria por completo. O nepotismo reinava em todos os mosteiros femininos. Abadessa que se conservasse por alguns anos à cabeça do mosteiro preparava automaticamente a sua sucessão entre as monjas da sua família. Praticado em Lorvão pela maioria das abadessas e desde os primeiros tempos, a coisa tomaria proporções escandalosas nos abadessados das Eças, quando praticamente todos os principais cargos de Lorvão estiveram em mãos de parentes chegadas da abadessa. Em 1512, no abadessado de dona. Catarina d’Eça, assinam uma escritura a prioresa dona Joana d’Eça, a celeireira dona Guiomar d’Eça, a sacristã dona Joana da Guerra - as Guerras eram primas das Eças - e ainda dona Isabel d’Eça, enfermeira: No abadessado seguinte, o de dona Margarida d’Eça, constata-se que, em 1521, a sua prioresa era dona Joana d’Eça, a sub-prioresa dona Guiomar d’Eça e a sacristã continuava a ser dona Joana da Guerra

E não era unicamente no interior do mosteiro, que se observa o favoritismo em relação à família. A abadessa dona Marina Gomes combina em 1264 com seu sobrinho D. João Rodrigues de Briteiros, que este receba de Lorvão uns casais que eram de sua irmã dona Teresa Rodrigues, monja em Lorvão, dando ele ao mosteiro uns casais na Estremadura, que eram de outra sua irmã, monja em Arouca. Esse quinhão, declara o contraente, fora-lhe concedido pela abadessa desse mosteiro.6  A mesma abadessa fez outras transacções do mesmo tipo com outros membros da sua família.

Caso parecido deu-se em 1400, numa troca de terras efectuada por dona Mécia Vasques da Cunha. Nesse ano, a 21 de Dezembro, reuniram-se no mosteiro de Lorvão, às portas da sala do cabido ‘a honrada e religiosa dona Mecia Vasques da Cunha’ e o convento do seu mosteiro. As religiosas tinham sido convocadas - como era costume - pelo toque da campainha ‘por campa tangida’, e, ‘todas juntas chamadas especialmente para isto’, que era, o de ouvir a proposta da abadessa no sentido de se cederem certos bens do mosteiro a seu pai, Vasco Martins da Cunha e ao Prior de Grijó, recebendo o mosteiro outros bens em troca. O que seria, garantia a abadessa, a favor, ‘por prol’, do dito seu mosteiro. As monjas disseram que sim, que ‘lhes prazia de tomarem os ditos casais, que lhes assim dona abadessa dava pelos outros que lhes tomou’, e todas juntamente ‘louvaram e outorgaram o dito escambo’.7 Parece pouco provável que Vasco Martins da Cunha e o Prior de Grijó se dessem ao trabalho de fazer esta troca por puro altruísmo. O facto é que a abadessa ter disposto de bens que eram do mosteiro a favor de homens da sua família.

Se as abadessas não se distinguiam das suas monjas no trajar, distinguiam-se, e muito, em tudo o resto. Pela autoridade que exerciam, e pelas suas regalias. A abadessa tinha casa própria dentro do complexo monástico, fugindo assim à vida em comum, que com o tempo se tornava odiosa à maioria das religiosas. As abadessas tinham maior liberdade em receber visitas, maior liberdade nas saídas.

As cistercienses não tinham estrita clausura, mas esperava-se das monjas que só se ausentassem do mosteiro em casos de grande necessidade ou de óbvia utilidade, de serviço a que o seu cargo as obrigasse. A abadessa, essa, tinha pelo seu cargo, ou por aquilo que ela considerava de seu cargo, frequentes ocasiões de absoluta necessidade que a obrigavam a se ausentar do mosteiro. Dona Vierna, a primeira abadessa de Lorvão, esteve presente em Montemor no ano de 1221, quando aí se reuniu a corte. A abadessa firmou nessa ocasião com a infanta D. Sancha um contrato, que garantia ao mosteiro de Lorvão a futura posse da vila da Esgueira. Foi uma saída que se justificava plenamente Havia uma visita obrigatória anual a Coimbra, à igreja de São Bartolomeu. Era uma obrigação herdada dos monges seus antecessores, e que Lorvão tinha de manter se não queria perder prestígio e a regalia de uma pele e uma ‘colheita de pão, vinho e peixe’, que o cabido de S. Bartolomeu era obrigado a fornecer por ocasião daquela visita. As primeiras abadessas tinham deixado cair este direito, até que a abadessa dona Constança Soares o repôs, juntamente com outros direitos resultantes do desleixo de algumas das suas antecessoras. Outra saída bem documentada e de óbvia utilidade para o mosteirot é a da abadessa dona Teresa Mendes, quando, a 4 de Setembro de l341, acompanhada de tabelião, vai ao local da Pedra do Vento, junto de Coimbra, tratar de um cidral que o mosteiro aí tinha, do qual o rendeiro há quatro anos não só não pagava a renda, como instalara nele um sublocatário. A abadessa tratou directa e pessoalmente do assunto. ‘A honrada religiosa e honesta dona Tareja, pela mercê de Deus abadessa do mosteiro de Lorvão,’ postou-se diante da porta da casa do cidral e ‘fez pergunta a Joam Peres, dito Cidreiro,’ a quem pertenciam o cidral, a casa, a vinha, e o olival que ali estavam. ‘E logo o dito Joam Peres respondeu, que era da dita abadessa e do seu convento do dito mosteiro de Lorvão. E logo outrossim fez pergunta a dita abadessa ao dito Joam Peres, quem no metera no dito logo e de cuja mão o tinha, e o dito Joam Peres respondeu logo, e disse, que o metera ali André Domingues de Requeixo por renda certa que lhe ele havia de dar.’ A isso retorquiu a abadessa, que ela não estava ali para fazer ‘força nem esbulho’ a ninguém, mas que o dito André Domingues não podia arrendar o que não era seu, que aquele lugar era dela e do seu mosteiro, que elas não renunciavam aos seus direitos pelo que, declarou, ‘filhamos esta casa com este cidral e vinha e olival e suas pertenças, e entramos em posse dele em nome do nosso mosteiro’ . Lido isto pelo tabelião que estava presente, a abadessa dirigiu-se ao dito Joam Peres e disse-lhe que visto aquele lugar ser seu e do seu mosteiro, que ‘ele se fosse dele a boa ventura e que saísse ende’. João Peres obedeceu, saiu da casa, e deu ordem aos vindimeiros que lá estavam que também saíssem, o que eles fizeram. E ‘logo, relata o instrumento, os homens da dita abadessa, que ali estavam, filharam terra, e ramos de vides e de cidral, e do olival, e telha da dita casa e meteram na mão da abadessa, e ela disse que por todas aquelas coisas ela filhava posse daquele lugar como de seu, como quer que posse sua posse...’8

No período em que Lorvão teve jurisdição criminal em algumas das suas terras, as abadessas faziam-se em geral representar por um ouvidor seu. Caso excepcional foi abadessa regedora dona Mècia. Essa senhora não perdia ocasião de estar presente em casos de pleito. Em 1351 - Lorvão ainda tinha jurisdição em Abiul, direito que posteriormente lhe seria retirado - houve nessa terra o julgamento de um tal João Monteiro por uso criminoso dum cutelo comprido. Apesar do julgamento ser presidido pelo ouvidor do mosteiro, lá estava também dona Mécia, hospedada ‘na casa sobrada que foi de Joham de Runinaço’,

Outra vez temos a abadessa dona Beatriz da Cunha indo a Coimbra para se assegurar de certos bens que um tal Gonçalo Nunes Torrado tinha em contrato com o mosteiro, e que lhe queria deixar por sua morte. A abadessa não podia deixar fugir tal maná, e deslocou-se a Coimbra, acompanhada da prioresa, da sub-prioresa, da celeireira e da sacristã e ainda de outras religiosas do mosteiro. E não faltou evidentemente o notário para ali mesmo tomar devida nota das palavras do moribundo, autentificando a doação daquilo que depois de sua morte ficaria ao mosteiro. Toda aquela gente entrou na casa onde se encontrava o infeliz Gonçalo Nunes: “jazendo ali o dito Gonçalo Nunes doente em uma cama de dô de enfermidade”.10

A abadessa dona Catarina d’Eça saiu frequentemente do seu mosteiro, sobretudo nos primeiros tempos de seu abadessado. Agindo como qualquer proprietário rural, ela vai em 1471 à Esgueira, vila que era do mosteiro, e aí, em casa de João de Ruão[1], faz um emprazamento a João Pires Delgado. No ano seguinte, ela está no ribeiro da Barroqueira, termos de Penacova, e faz aí o emprazamento de uma vinha que o mosteiro tinha em Sabugosa. Nos últimos anos da sua vida, as saídas são mais raras, e os contratos em geral firmados em Lorvão em seu quarto, em sua ‘câmara’. Mas em 1503 há assunto de grande importância a tratar, e temos notícia de dona Catarina ter saído do mosteiro. Vai à vila de Esgueira para conseguir a composição entre o seu mosteiro e os habitantes dessa vila. Nos últimos anos vivera-se uma verdadeira revolta dos foreiros de Lorvão, a gente de Esgueira revoltando-se contra exigências dos administradores do mosteiro, e não era a primeira vez. Como donatárias de Esgueira as monjas de Lorvão tinham ali direitos que revoltavam os habitantes. Em 1428 houvera uma magna questão por os pescadores da Esgueira retirarem o peixe das redes antes de terem chamado o procurador do mosteiro, o que, segundo a abadessa de Lorvão, não podiam fazer. Ela tinha o direito de escolher o peixe que lhe cabia antes de ser retirado dos barcos. A coisa não ficou por ali, foi-se arrastando com periódicos focos de revolta contra essa obrigação. Em 1503, ambas as partes procuravam o apaziguamento da situação. O povo foia chamado ‘por pregão para esta causa de boa concórdia e amigável composição’, muita gente compareceu, e, por parte de Lorvão, estava lá a sua abadessa. ‘No ano do nascimento de N.S. Jesus Cristo de 1503, aos 23 do mês de Novembro em a vila da Esgueira, terra e jurisdição cível do mosteiro de Lorvão, no outeiro junto da ermida de S. Sebastião, estando ahi a muito vertuosa senhora, a senhora dona Catherina d’Eça de viva memória abadessa do mosteiro de Lorvão.’ 12 O assunto foi debatido, ambas as partes fizeram concessões, e chegou-se a um acordo provisório. Que talvez não se tivesse conseguido sem a presença da abadessa do mosteiro.

Em tempos de guerra ou de revoltas no país, também vemos as abadessas saindo dos seus mosteiros. Isolados, em geral afastados de povoações, os mosteiros eram particularmente vulneráveis aos saques da soldadesca, e nessas ocasiões era costume as religiosas refugiarem-se na cidade mais próxima. Há um emprazamento feito em 1385 em Coimbra, estando regedora e monjas alojadas nas casas de Dom Ruy Lourenço, ‘Daiam (sic) da dita cidade, em que pousamos de presente, ‘por necessidade da guerra.’

Saidas desnecessárias, idas à corte, peregrinações a santuários, passeios, de que abadessas de mosteiros ingleses e alemães eram acusadas, não houve em Lorvão, ou não foram tão escandalosas que dessem brado.

A mais frequente critica que na Europa medieval se fazia `às abadessas era a de serem más administradoras dos seus mosteiros. Despesas excessivas, contas que se deviam prestar à comunidade e não se prestavam, arrendamentos imprudentes, vendas de direitos centenários do mosteiro contra moeda sonante, de tudo isso houve em Lorvão.

Contra uma abadessa despesista e má administradora pouco havia a fazer, a não ser dar-lhe depois de morta uma sucessora competente. Como sucedeu em 1288, quando, com o mosteiro em estado de pobreza, ‘paupertate’, as monjas puseram fim fim ao longo governo de compadrio Sousas e Brieiros, e elegeram na abadessa dona Constança Soares, uma grande administradora. Sucedem-se com ela os emprazamentos de parcelas de terras destinadas a olivais, com rigorosas indicações do plantio, com boas e saudáveis plantas e, ‘escavados e cavados e estercados como os bons olivais de Coimbra e ao tempo em que o deve de ser’. Dona Constança procurou também reaver terras perdidas e outros bens alienados, conseguindo até que o bispo de Coimbra, que em geral não era pródigo em cedências, concordasse em que as igrejas de Abiul e do Botão se unissem de novo a Lorvão, coisa até ali muito disputada entre os prévios bispos e as abadessas. No instrumento feito por essa ocasião, o Bispo declarava que, atendendo à pobreza e à carência de que sofria o mosteiro, ‘paupertate et megnam inopitam Conventus Santimonialem Monasterii de Lorbano’, e também em consideração da sua abadessa ‘ab honorem Religiosae Donae Constantiae Sueri’, ele, Bispo Américo, consentia de novo na união das duas igrejas ao mosteiro de Lorvão. A recuperação de direitos abandonados ou perdidos era um dos grandes problemas que as abadessas, que sucediam a uma má administradora, tinham de enfrentar. Nada parecia mais fácil a uma abadessa que precisava urgentemente de dinheiro do que vender uma terra ou um direito.

Dona abadessa - era assim que a partir do século XIV mais comummente se nomeava a superiora do Lorvão – assinava sempre com a sua comunidade ‘Nós Maria Joanis Abbatissa et convento monasterio de Lorbano.’ lê-se em documento de 3 de Maio de 1288. Em 1300, a abadessa Dona Constança Soares dirigia-se ao povo usando o título de Don, e prescindio de quando escrevia ao bispo de Coimbra “Constancia Suery eidem gratia Abatisse de Lorvão et conventus eiusdem” Também a abadessa Urraca Reimundo rescinde do Dom quando se dirige a um bispo. ‘Nós Orraca Reymundo e o convento do mosteiro de Lorvão vos enviamos comendar em vossa graça...’ lê-se em documento datado de Julho de 1328 dirigido ao bispo de Viseu. As abadessas Cunha e Eça, senhoras que não transigiam sobre os seus pergaminhos, usam sempre o Dom, quer se dirijam a bispos quer a leigos. Uma delas, Dona Maria de Cunha, faz mesmo questão de mencionar o seu nascimento, assinando em 1 de Agosto de 1435 um contrato como dona Maria da Cunha, ‘de nobil genere’. ‘Com as Eças não havia que vincar nascimento. Os Eças eram de sangue real, passaram a ser ‘magníficas’: ‘Na câmara da muito magnífica e virtuosa senhora’, lê-se em documento de dona Catharina d’Eça. A sua sucessora foi a ‘muito magnifica senhora, a senhora Dona Margarida d’Essa’

Das abadessas esperava-se qualidades de administradora, e autoridade sobre o seu convento, em privilegiar umas, ou uma, das suas religiosas, e evidentemente um irrepreensível comportamento. Os escritores do século XIX deliciavam-se quando encontravam escândalo amorosos nos mosteiros, e assim nasceu a acusação que a grande dona Catarina d’Eça tivera oito filhos. Coisa absolutamente impossível quando se sabe da periódica, rigorosa visitação de que os mosteiros da Ordem de Custer eram alvo. Porém, como este tipo de boatos notícias têm por vezes uma base de verdade, sugiro que essa mãe de oito filhos, se na verdade existiu, fosse irmã gémea da abadessa dona Catarina. O facto de se dar o mesmo nome a gémeos tem conduzido a mais do que um erro genealógico.




1 T.T. Lorvão . Lº 40-206v
2 T.T. Lorvão. Lº 40-69v
Vintena do mar, ou da marinha, designava, segundo Viterbo, designava o arrolamento de jovens para servirem a bordo dos navios das armadas. Dos homens de uma vila ou aldeia postos em ala, era tomado de cada vinte, um. Eram os ‘vintaneiros’ do mar, da marinha ou das galés. Ver-se livre da vintena valia bem uma marinha de fazer sal.
 3 T.T. Lorvão. Gavetas 06-Mº1
5 TT. Lorvão Col. Esp,. Mº9-Nr.17,18
Jacinto Vieira, um artista bracarense, esculpiu estátuas em tamanho natural das monjas de Arouca com esse elegante hábito
6 TT. Lorvão. Col. Esp.. Mº10-Nr.14
7 T.T. Lorvão Gavetas06-Mº 7
8 T.T. Lorvão. Livro 40-233,233v
10 T.T. Lorvão. Gavetas2-Mº 2-Nr.22
11. João de Ruão ou Jean de Rouen (Ruão, 1500 – Portugal, 1580 foi um escultor e arquiteto de origem francesa ativo em Portugal entre aproximadamente 1528 e 1580
12 T.T. Lorvão Livro 313

0 comentários:

Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

Lorem Ipsum

  © Blogger template Digi-digi by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP