Escrita e leitura ao masculino e ao feminino

>> segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009




Escrita e leitura ao masculino e ao feminino

Homens e mulheres têm gostos diferentes no que escrevem e no que lêem. Acho eu. E tenho mais algumas ideias sobre esta coisa de leitura e escrita no masculino e no feminino. Tenho mesmo tantas ideias e tantas perguntas a esse respeito, que não tinha tenção de me lançar em tão vasto assunto. Uma frase de Patrícia Reis lida no blogue: Click(IN)VERSOS fez com que afinal me aventurasse nele, não na esperança de esclarecer o assunto, só para o abordar. Ao de leve, com os devidos cuidados e as necessárias atenções.
Patrícia Reis, a quem uma entrevistadora perguntava porque é que os relacionamentos amorosos estavam muito presentes nos seus livros, (curiosa pergunta, aliás) respondeu desta forma:
– Ora, porque é um livro de uma mulherzinha. (RISOS) Quando é um homem a escrever uma história de amor, ele está a meditar sobre a condição humana... Ora, escrevo também sobre a condição humana. Há vozes distintas em meus livros e escrevo uma história para cada um dos personagens. Não existe literatura feminina. Estou farta desta questão. As pessoas têm manias dos rótulos e dos gêneros. Por que? Os homens gostam mais de sexo do que a mulher? Isso é o que os homens gostam de pensar... “
A resposta era um pouco confusa, mas permitiu-me concluir que aquilo que a autora pretendia dizer, era que, para ela, não havia distinção entre literatura feminina e literatura masculina.
Confesso que estas declarações peremptórias me espantam. Sucedem-se os estudos sobre a escrita feminina e a leitura feminina, eu acabara de ler um livro sobre a leitura ao feminino*, o livro mostrava, nem que fosse pela sua abundante bibliografia, que a divergência entre leitura ao feminino e ao masculino é assunto de estudos e debates, e aqui tínhamos uma autora de ficção varrendo o assunto para baixo do tapete. Que escrita feminina e escrita masculina são igualmente literatura, ninguém discute, o que me parece incompreensível é que alguém seja da opinião que nada distingue uma da outra.
Parece-me o contrário. Creio que escritoras e escritores, leitoras e leitores se diferenciam na escolha dos temas da sua escrita e da sua leitura, e, que no que diz respeito à leitura, a diferença de gostos se nota-se já na criança.
Na escola que eu frequentava, o colégio alemão, havia de duas em duas semanas uma aula que era dedicada à ida à biblioteva para a escolha de livros por nós alunos. Lembro-me muito bem que, nas raparigas, a tendência era para a escolher de preferência livros, chamados "de rapariga", e que, no caso dos rapazes, a preferência ia para os livros de aventura, de piratas, de tesouros escondidos.
Havia também revistas destinadas a gente nova. Em inglês parece-me que se intitulavam respectivamente “Girls Own” e “Boys Own”, e as correspondentes revistas alemãs chamavam-se “Der gute Kamerad” (O bom Camarada) e “Wir Maedel” (Nós, raparigas). Eram diferentes, porque os editores partiam do princípio que gostos de rapazes e raparigas eram diferentes.
Não me lembra de um dos meus irmãos pegar na minha revista, mas eu lia a minha e a deles, Não era caso único, muitas raparigas leitoras liam também livros de aventura. O que era impensável era que rapaz lesse livro de rapariga. E a coisa não mudou com o passar dos anos. Enquanto uma mulher lê sem hesitar livros mais conotados com o gosto masculino, deve ser raro um homem pegar em livro especificamente feminino.
E já lhes deu para pensar nos contos de fada - um género de "ficção" também eles? Se seriam de autoria feminina, ou de autoria masculina? Se seriam destinados a raparigas ou a rapazes?
Ultimamente tem-se escrito muito sobre o simbolismo e o fundo psicológico dos contos de fada. É já um novo ramo da investigação literária, e, no entanto, creio que o assunto não foi ainda abordado sob este aspecto: a saber se os contos que há centenas ou milhares de anos brotaram da imaginação de narradores anónimos, se esses pequenos textos, levados por boca de terra em terra, eram da autoria de mulheres ou de homens e se eram destinados a um mesmo público de ouvintes. Creio que não, creio que alguns dos contos eram destinados a jovens - e até menos jovens - "ouvintes" masculinos, enquanto que outros, se destinavam sem uma dúvida a serem ouvidos por jovens - e até menos jovens - "ouvintes" femininas. Basta pensar no conto do "Capuchinho vermelho". As recomendações que a mãe do Capuchinho lhe faz: nunca se afastar de caminho, nunca dar atenção às palavras do lobo, se ele lhe aparecesse, recomendações mais extensas e explícitas ainda na forma francesa do mesmo conto, são recomendações que qualquer mãe já fez a uma sua filha. O "Capuchinho Vermelho", foi decerto inventado por uma mulher e decerto para ser contado a raparigas. Para as divertir e para as precaver. É um conto puramente feminino. Tal como a "Branca de Neve e os sete anões" é feminino, e tal como é puramente para rapazes e ideado decerto por homem o conto do rapaz que "saiu de casa para aprender a ter medo".
Quem se quiser dar ao trabalho de estudar os contos sob esse aspecto, distinguirá facilmente os contos 'femininos' dos contos 'masculinos’. Tal como - digam o que quiserem - se distingue hoje, a ficção feminina da ficção masculina. Há temas abordados por homens que poucas mulheres escolheriam para tecer uma história em sua volta. E vice versa. Tal como o faziam os narradores ambulantes de contos.
Creio que a mulher escreve e lê de preferência romances baseadas em factos e sentimentos concretos, não escreve ficção muito cerebral, ou muito fantasiosa. E quem diz escritor e escritora, diz leitor e leitora. Na sua leitura e na sua escrita, a mulher prefere normalmente romances com pessoas e coisas que possa visualizar, sentir, que se situem em meios que lhe sejam familiares. Raras vezes entra pelo fabuloso, por onde o homem recentemente tem enveredado com tanto êxito. E, mais uma vez, quem diz escritora, diz leitora.
Pareece-me que, com raras excepções a mulher leitora preferirá, se lhe propuserem a escolha - dando um exemplo concreto tirado da literatura sul-americana - ‘O Tempo e o Vento’ de Erico Veríssimo ao ‘Cem Anos de Solidão’ de Garcia Marques. Porque prefere o realismo verdadeiro ao realismo mágico.
É verdade, como já disse, que a mulher leitora lê, indiferentemente, livros de escritores e livros de escritoras, mas creio que há livros - e grandes - de autores masculinos, que a mulher leitora lê com menos agrado e menos facilidade. Procurando, assim de repente, um desses livros que julgo agradarem pouco às leitoras, lembro-me de ‘Moby Dick’, de Melville. Por mim falo. Forcei-me a lê-lo, mas sei com absoluta certeza que não lhe voltarei a pegar.
Já ‘Guerra e Paz’ de Tolstoy é livro para – em minha opinião - agradar tanto ao leitor masculino como ao feminino. Tem romance, tem retratos de mulher, tem pintura de costumes que bastam para ela, e tem retratos de homem, tem debates filosóficos, tem guerra - e discussão dela - que bastam para ele.
Pois nem todos são da minha opinião. Scott Fitzgerald tratava ‘Guerra e Paz’ de livro para homem. Como a filha (que teria então 18 ou 19 anos) não o tivesse conseguido ler até ao fim, ele repreendia-a por ter começado a lê-lo, sem estar preparada para isso: “You shouldn’t have started War and Peace, which is a man’s book and may interest you later”. **
É uma curiosa afirmação, mas muito verdadeira em um dos seus aspectos. Passados aqueles primeiros anos de leitora, em que a mulher lê quase exclusivamente o género “ficção”, surgem gradualmente novos interesses e com eles o gosto por outro tipo de literatura. Assuntos e problemas abordados em ‘.Guerra e Paz’, que não a interessavam aos dezanove anos, já a poderão interessar aos trinta ou quarenta.
Isto quanto à leitura. Na escrita, penso que a diferença entre literatura masculina e feminina não está tanto no estilo, que aí praticamente não há distinção óbvia, que a diferença, está mais nos temas escolhidos por uns e por outras e está na abordagem destes. Assim, por exemplo - a não ser nos romances policiais - as escritoras escolhem prioritariamente uma mulher como centro das suas histórias, enquanto os escritores escolhem prioritariamente homens como heróis, ou centro principal. Não o fazem decerto de propósito, nem um nem outra. Fazem-no instintivamente. Colocam prioritariamente (repito, prioritariamente, não me esqueço das grandes excepções) personagens do seu sexo no centro das suas respectivas ficções, porque são essas as que melhor conhecem.
A propósito. O “Nibelungenlied”, a saga dos Nibelungos, é em geral identificado com a pessoa do herói Siegfried, e portanto como um livro de homem. Foi coisa que nunca questionei. Até que um dia me deu no goto que o anónimo autor daquela saga, falasse tanto de vestuário. Comentei-o com a minha filha numa carta escrita em Setembro 2006: “.a respeito do Nibelungenlied. ......... Uma das coisas que me diverte, é a preocupação do autor com o vestuário das mulheres. Chego a pensar que se tratava de uma autora, porque as heroínas e as suas damas passam a vida a por e tirar vestidos,...”
Curiosa de aprofundar esse aspecto do livro, peguei nele de novo, e constatei com espanto que a primeira pessoa nele mencionada, não é Siegfried, é Krimhilde (Cremilde). Não a segunda, ou a terceira personagem, a primeira. A estória é a estória dela. Na segunda estrofe do poema lê-se:
“Crescia então nas terras de Borgonha uma rapariga de primeira nobreza, mais bela que todas as outras no mundo, chamada Krimhilde. Viria a ser uma linda mulher e muitos guerreiros deixariam a vida por sua causa.”
Por sua causa, é verdade, mas não ‘em sua causa’. A historia é muito mais a história de duas mulheres – Krimhilde e Bruenhilde – que se servem dos homens para as suas vinganças. Talvez não fosse escrita por uma mulher, mas é um livro feminino.
Leitura e escrita ao feminino e ao masculino, o tema é difícil, e é delicado. Não esqueço as grandes poetizas e as grandes romancistas, mas a grande literatura é “ao masculino”. Não tenho duvida a esse respeito, o que ignoro é a razão. Há o argumento da mulher a quem os homens durante séculos não permitiam que ...... Sem dúvida, mas não é só essa a razão. Há o papel de mãe para o qual a natureza a destinou, que rouba à mulher o tempo necessário para se dedicar a coisa tão absorvente como a escrita. E como se pode ela concentrar, como a grande literatura exige, quando vive em constante preocupação com a saúde e a educação dos filhos? O homem consegue abstrair, a mulher, não. Outras razões haverá. Não sei. E, confesso, que pouco me importo. Se o livro é bom, tanto se me dá que o autor tenha sido homem ou mulher.

* La lecture au féminin. La lectrice dans la litérature française du Moyen Age au XX siècle”,WBG Darmstadt

** F. Scott Fitzgerald On Writing editred by Larry W.. Phillips

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DAS CARTAS AOS MAILS

>> segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


Das cartas aos mails
“Você tem correio”
Julgava eu que acabara para sempre a emoção de receber uma carta quando um filme encantador me veio provar o contrário. “You have mail” (o título parece ser este ) mostra como a carta electrónica de hoje pode ser tão emocionante como o era nos tempos passados a carta que o correio trazia. O que talvez tenha acabado para sempre são os livros de cartas de gente que primou na arte epistolar. Ou será que alguém publicará um dia as cartas electrónicas de dois escritores, de dois políticos dos nossos dias? E de dois anónimos que só se conhecem pela Net? Será preciso esperar para ver.
No século XVII um inglês (Lord Chesterfield) indicava ao filho, como exemplos dignos de estudar e de imitar, as cartas de Cícero, do cardeal d'Ossat, de Bussy Rabutin, e as de Madame de Sévigné.
Não conheço a correspondência de Ossat, e provavelmente já ninguém o recomendará pela sua arte epistolar. Os nomes de Cícero e de Madame de Sévigná é que nunca podem faltar quando se trata de arte de escrever cartas. Em princípio, creio que nem um nem outro escreveram para serem lidos por outros que não os destinatários das suas cartas. Em princípio! Porque no caso de madame de Sévigné, não tardou que as suas cartas passassem de mão em mão lidas na roda íntima dos seus conhecidos.
. A escrita de cartas era uma arte cultivada por uma elite culta, além missiva pessoal. a carta era exercício literário. E no seu tempo, reconhecido por todos, nem homem nem mulher excedia Madame de Sévigné.
O preciosismo do século XVII foi passando, esperava-se que uma carta fosse bem escrita, mas não se exigia que brilhasse como obra literária. A 3 de Janeiro de 1801 Jane Austen escrevia a sua irmã Cassandra: “Atingi agora aquilo que nos dizem ser a verdadeira arte de escrever cartas, que é o de exprimir no papel exactamente aquilo que diríamos à mesma pessoa por boca”.
. As pessoas escreviam como falavam, ao correr da pena. Cumpriam, decerto sem pensar, a regra principal da boa comunicação epistolar: transmitir ao correspondente, por escrito, como o faria verbalmente, aquilo que não lhe pode dizer directamente.
Em Portugal foi com certeza no século XIX quando elas descobriram a política, e se lhes abriram outros novos horizontes, que as mulheres se tornaram entusiásticas praticantes da arte epistolar. As senhoras tinham o seu dia de correspondência, em que punham, como elas diziam, "a escrita em dia", cobrindo com a sua letra cuidada, em linhas cruzadas e até contra cruzadas, resmas do melhor papel de carta jamais fabricado.
È em parte devido áqueles pormenores triviais, que raras vezes faltam nas cartas de mulher, que estas despretensiosas correspondentes familiares, transmitem como ninguém o espírito da sua época. E é na convicção do que elas revelam do espírito do século XIX, que eu talvez ainda venha a contribuir para a expistolografia feminina portuguesa com a publicação das cartas familiares da minha bisavó materna e das suas filhas.
Penso que um dos atractivos da leitura de volumes de cartas tem alguma coisa a ver com o seu lado indiscreto. O leitor tem a sensação de estar a olhar para dentro duma casa, de estar ouvindo o que lá se está vivendo, entra na intimidade das pessoas. Estou falando das correspondências familiares. Nada disto tem a ver com correspondência diplomática, ou de escritores, de pensadores.
Numa categoria à parte estão as cartas de amor. Há-as sem duvida lindíssimas, de grande valor sentimental e literário, basta lembrar as cartas de Héloise e Abélard, sempre citadas em primeiro lugar. Não sou grande amadora do género. Expressões de amor saídas das penas de grandes figuras das letras ou da política, expressões que a seu tempo decerto deleitaram amados e amadas, deixam-me frias, quando não incomodada por pueris ou de mau gosto. Acho que as cartas de Napoleão a Josefina podiam muito bem ter ficado no segredo dos arquivos, e as cartas de amor de Fernando Pessoa dão vontade de rir. Aqueles "meu bebezinho querido", com certeza recebidos com encanto pela destinatária, soam ligeiramente ridículos aos nossos ouvidos.
Não aprofundei o caso, mas creio que, ao longo da história, as mulheres talvez tenham sido mais felizes que os homens na expressão epistolar dos seus sentimentos. Veja-se, por exemplo, como se exprimiu uma mulher famosa, escrevendo, nos primeiros anos do séc. XIX a um jovem português por quem estava apaixonada. Mesmo quem não aprecia muito o género, sabe apreciar o que é bonito.
"Os cortesãos de Buonaparte não recolhem mais avidamente as suas palavras do que eu traço as vossas no meu coração", escrevia Germaine Necker, baronesa de Stael a D. Pedro de Sousa e Holstein. Ela tinha 40 anos, ele tinha 24. Fora um conhecimento nascido em Itália, onde D. Pedro ocupava um posto diplomático e madame de Stael estava em viagem cultural. Só aquele encontro entre eles e o seu amor por ele, lhe tinham aberto os olhos para as belezas que vira à sua volta, confessaria a apaixonada baronesa: "Só por si é que me foi dado compreender as delícias daquela estadia, a minha imaginação ainda não tinha povoado o deserto, amei-o e tudo se animou para mim, as belas-artes, a natureza e mesmo as recordações do passado".

O que dizem outros

Johann Wolfgang Goethte Afinidades electivas
"Pomos de parte as cartas, para nunca mais as lermos, depois destruímo-las por discrição, e assim desaparece o mais belo, o mais imediato sopro de vida, perdido para sempre, para nós e para os outros."

Victor Hugo Journal d'un jeune Jacobite de 1819
".... O género epistolar deve mais à natureza do que à arte. As produções desse tipo são, pode-se dizer, como as flores, que crescem por si, enquanto todas as outras composições do espírito humano se assemelham a edifícios que desde os seus fundamentos têm de ser laboriosamente construídos segundo leis gerais e combinações particulares. A maior parte dos autores epistolares ignorou que eram autores; ........não escreviam por escrever, mas porque tinham parentes e amigos, problemas e afecções. Na sua correspondência não estavam minimamente preocupados com a imortalidade, mas muito burguesmente com os cuidados materiais da vida. O seu estilo é simples como a intimidade............"

Exemplo de uma carta familiar

Carta de Isabel Saldanha da Gama (17 anos) para sua irmã Theresa, datada de Caxias, a 10 de Outubro 1866
“Minha muito querida Theresa recebi ontem, 9, carta sua de parabéns que muito agradeço. Achei imensa graça à sua descrição do dia dos meus anos, é exactíssima. Ao abrir os olhos recebi carta e doces de Resgatinha (sic), um pouco mais tarde, doces do senhor César acompanhados duma carta em prosa poética que, como a menina diz, me pôs de horrível humor. Resmunguei, chamei tolo ao pobre do homem, tive meia hora a pena na mão e afinal escrevi duas palavras sensaboríssimas, mas as sublimidades do Cesário têm a habilidade de me empatetecer”.
A autora da carta era filha dos condes da Ponte, e o pai era nessa ocasião Vedor da Casa Real. A família passava o verão em Caxias, e ali perto, em Linda-a-Velha, era a quinta do pai de Cesário Verde, onde ele produziu óptima fruta. É possível que o senhor César, fornecesse a casa real e daí conhecesse o conde da Ponte e as filhas. Não sei. Mas quem gosta dos versos de Cesário Verde gostará desta prova da sua ascendência poética. E é de uma carta familiar que nos vem a informação.
As cartas acabaram, temos o e-mail e os blogues. Não é nada mau.

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Do romance historico

>> segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009


O romance histórico

Alguns factos e um dilema
O romance histórico é uma obra de ficção - de amor, de aventura, de mistério – vivida em tempos mais ou menos longínquos, ou tratando de um caso misterioso estreitamente relacionado com o passado. O género brotou em força no século XIX quando se descobriu uma nova forma de encarar a História, e homens que se intitularam de Historiadores, passaram a estudar as fontes originais, e a partir delas procuraram reconstituir os feitos do passado. Poetas e romancistas foram no encalço dos historiadores, aproveitavam-lhes as revelações, ou eram eles mesmos investigadores, e criaram um novo género literário: o romance histórico. Walter Scott (1771-1832) é considerado o criador do género, seguido em França por Vitor Hugo (1802-1885), na Alemanha por Gustav Freyrag (1816-1895) em Portugal por Alexandre Herculano (1810-1877). Em 1895, o polaco Henryk Sienkiewics inaugurou, com o seu “Quo Vadis?”, o romance histórico no cenário da Roma dos Césares.
“Era na altura um tipo de narrativa que devia combinar, cita a Wikipedia: ”a erudição do historiador, necessária para a minuciosa reconstituição de ambientes e costumes de épocas passadas, com a imaginação do literato, que cria ou amplia tramas para compor seus enredos. Dessa forma, o autor situação num tempo passado, procurando reconstituir uma época. Para isso, contribuem descrições pormenorizadas de quadros antigos, como festas religiosas, indumentárias, ambientes e aposentos, topografias de cidades. São frequentes as intervenções do narrador, que tece comentários filosóficos, sociais ou políticos, muitas vezes relacionando o passado narrado com o quotidiano do século XIX.”
Com o tempo o género foi evoluindo, não se escreve hoje o romance histórico como se escrevia no século XIX. As intervenções do narrador, tecendo comentários filosóficos, sociais ou políticos desapareceram, e já não se exige do autor de romances históricos que seja erudito historiador. Não faltam livros em que se poderá informar sobre os costumes da época em que situa a sua narrativa.
Há naturalmente uns tantos pressupostos. O autor deve ter a capacidade e a imaginação de se colocar na época em que situa os acontecimentos do seu romance, e não irá pôr no centro da acção um conflito baseado em problemas que na época não existiam.
Depois há que ter cuidado com o uso de nomes próprios. Não havia Sónias, Vanias, Sabrinas ou Marlenes na Na Idade Média, a filha de um burguês não era Mafalda nem Cunigunda, deixem isso às princesas e senhoras da alta nobreza. Usava-se o patronímico António Feliciano, era filho de Feliciano. José Joanes era filho de João, José Carvoeiro era decerto filho de quem exercia essa função. Se a narrativa se situa em tempos mais recentes, em fins do século XIX por exemplo, há que recordar que só houve Marias de Lourdes e Milús depois dos aparecimentos marianos em Lourdes.
E, goste-se ou não se goste, havia classes, e havia usos que distinguiam as classes. As modas não eram iguais para todos, havia cores e tecidos reservados à alta nobreza, algumas mesmo só aos reis e rainhas. As mulheres trabalhavam nos mais variados ofícios, e a grande maioria, mesmo as mais altamente colocadas, não sabia ler.
Depois há os pormenores de ordem material. A luz artificial era de velas e candeias de azeite, os vidros nas janelas só tarde existiram, as batatas vieram da América, não as havia antes do século XVI.
Quanto ao diálogo. A gíria, e as expressões “da moda” marcam uma época. Em narrativa do século passado ou anterior não se podem usar expressões que sejam nitidamente dos dias de hoje.
Um exemplo crasso daquilo que nessa matéria não se pode fazer, encontramo-lo num livro recente de Isabel Stilwell, no qual lemos como D. Catarina de Bragança, recém casada com Carlos II de Inglaterra, mostrando o seu espanto por uma atenção do marido, se lhe dirige com estas palavras: “Não me diga, Carlos”. A expressão é tão “actual”, que mesmo em romance do século XIX seria descabida, e no século XVII é de um cómico tal, que o “Não me diiiga, Carlos” - o assento nos is é obrigatório -, entrou desde já na minha colectânea de frases de humor involuntário.
Em romance histórico, o título do livro também é importante para o colocar na época e dar o tom do género de história que será. Exemplo daquilo que não se fará na matéria, é mais uma vez o citado livro de Isabel Stilwell. Ela intitulou-o “D.Catarina de Bragança, unica portuguesa que foi rainha de Inglaterra......”. Perante o título, e a vasta bibliografia citada no livro, o leitor estava no direito de pensar que se tratava da vida, historicamente estudada, dessa personagem real, que se estava perante a biografia daquela D. Catarina, que fora rainha de Inglaterra.
Só quando folheei o livro e li as conversas inventadas, e a infanta, dirigindo-se a seu futuro marido com o fatídico: “Não me diga, Carlos”. percebi que aquilo era, não uma biografia de D. Catarina de Bragança, mas um romance histórico à base da sua vida.
Das entrevistas que depois da publicação do livro fizeram à autora, conclui que ela se considera uma espécie de detective, de investigadora, da História, e, neste caso, da história de Dona Catarina de Bragança. Ora, querida Isabel Stilwell, os “detectives” do seu romance foram aqueles que lhe forneceram os dados sobre os quais pode arquitectar a sua semi-biografia, ou semi-romance, foram os autores das obras que cita na bibliografia. Conto-me entre elas. Decifrei, primeiro no arquivo da minha família materna, depois em arquivos e bibliotecas de Londres, Paris, Lisboa e Vila Viçosa perto de vinte volumes manuscritos da correspondência do homem que fez aquele casamento, e sem o qual nada se saberia das suas negociação, da ida da Infanta, dos seus primeiros tempos de casada etc etc Depois escrevi sobre essa investigação. Essa esteve em primeiro lugar. Deixe aos investigadores o que é deles, e bem pouco é.
Em Portugal, o romance histórico, praticamente adormecido desde Alexandre Herculano, renasceu com Fernando de Campos, e o género proliferou quando - perante o sucesso do livro de Dan Brown - se provou que era fácil escrever um romance histórico. E como há por cá uma certa tendência para o exagero deu-se entre os autores portugueses este curioso fenómeno, que é confundir um romance histórico com obra de História.
Dito isto, apetece-me falar de questão de outro género e bastante mais interessante. É questão nascida da leitura de um post publicado no blogue “Arte de Ler”. Trata-se de saber, se é fazível apresentar um facto histórico inédito em obra de ficção.
Peço desculpa aos autores se abrevio nos seus respectivos textos, as apreciações de estilo etc. que não adiantam para a questão que para mim é central.
O livro que dá origem à questão é “O Cavaleiro da Ilha do Corvo” de Joaquim Fernandes (Círculo de Leitores / Temas e Debates), e o crítico que originou o debate foi Luís Carlos Silva.
Depois de uma apreciação da qualidade literária da obra, Luís Carlos Silva escreve:
“Essencialmente, o romance anda à volta de uma hipotética estátua encontrada pelos navegadores portugueses na Ilha do Corvo, decorria o reinado de D. Manuel I e que, juntamente com outros achados, provaria que as ilhas haviam sido descobertas muitos séculos antes dos navegadores portugueses. A descrição desta estátua é feita por Damião de Góis, o que, para o autor, é suficiente como garantia de veracidade. Ou seja, Damião de Góis é, para o autor, uma fonte autorizada e irrefutável. Contudo, e apesar de termos em grande conta o prestigiado humanista português, temos de relembrar que é o mesmo Damião de Góis que dedica várias linhas na sua Descrição da Cidade de Lisboa à existência de tritões, nereidas e sereias nas águas limítrofes à cidade.”
A análise toca em outros pontos discutíveis, inspiração no livro de Dan Brown, erros como o confundir meridianos com paralelos, etc, mas “ainda assim, prossegue o crítico, trata-se de um livro que satisfaz bastante, enquanto obra de ficção, pois tem um enredo bem encadeado e cativante...............”
A partir dali seguiu-se, escreve Luís Carlos Silva, uma amistosa troca de e-mails entre ele e o Prof. Joaquim Fernandes, e este aceitara o desafio de escrever um texto como “resposta” à recensão crítica da sua obra.
Eis o que o autor disse:
“O objectivo do meu romance, ‘O Cavaleiro da Ilha do Corvo’, não foi produzir obra-prima ficcional, “mas sim colocar à disposição dos leitores, pela primeira vez sobre a matéria, um painel documental sobre a hipótese da verosimilhança da polémica estátua corvina. Sendo antes de mais historiador, procurei atestar essa competência na confortável bibliografia, reunida ao longo de mais uma década, com intermitências, e exposta no final da obra. Sinceramente, nunca me preocupei com o modelo do “Código da Vinci”, ainda que logicamente o “esqueleto” ficcional da obra o torne comparável. Mas aqui nem pretendi ser original: bastou-me o insólito do acervo documental, ignorado pela generalidade dos leitores – incluindo muitos colegas académicos – para superar as eventuais fraquezas do enredo................................................
O que tentei fazer no meu despretensioso “romance” (modalidade por que optei em lugar de um porventura maçador ensaio) foi colectar e oferecer aos leitores “comuns” toda a informação disponível sobre o tema – que considero fascinante e tem ligações, como se sabe, a toda uma tradição do imaginário ocidental atlântico e “atlântido”, onde se fundem literatura e história.”
Até aqui o professor Joaquim Fernandes.
Pessoalmente, o que desde logo me interessou foi a questão que os dois textos indirectamente levantavam: a saber, se um facto ou caso histórico inédito, e possivelmente controverso, pode ser apresentado por meio de uma obra de ficção , ou se há que seguir as vias académicas, dando primeiro a conhecê-lo por meio de um ensaio -“possivelmente maçador” - ou outro tipo de estudo.
O prof. Joaquim Fernandes optou pelo romance. O qual, segundo ele, existia apenas para apresentar uma teoria e a vasta bibliografia em que esta se apoiava.
À primeira vista, a opção do autor pareceu-me inadmissível. Se ele estava razoavelmente convencido de que havia provas de ter existido na Ilha do Corvo a estátua de um cavaleiro, datada de muitos anos antes das descobertas portuguesas, então o assunto era de interesse histórico, e em minha opinião devia ser tratado primeiro em ensaio, ou estudo, com argumentos bem documentados, quite a ser depois usado de outra forma, de ser o pano de fundo de um romance detectivesco ou histórico, por exemplo.
Em seguida reconsiderei. Não havia duvida que aquilo que se impunha era um estudo e não um romance. Mas... estamos em Portugal. Quem iria ler o dito estudo? Quem o analisaria e criticaria com competência e isenção?
E depois, e aí é que bate o ponto: recordei o meu próprio, recente, dilema.
Estando em posse de um facto, que me parecia, e parece, relevante para a solução de um problema histórico, optei por o revelar em romance histórico (ainda por publicar). E fi-lo por ter a certeza que como “estudo” não seria lido e comentado, e que, incluído em romance, talvez o fosse. Ou seja, eu fizera exactamente a mesma coisa que o professor Joaquim Fernandes.
E mais. Tendo eu estudado em profundidade –nas fontes – a vida monástica das mulheres em Portugal, e terminado um estudo a esse respeito, imaginei as longas duvidas das editoras, e decidi não esperar pelas suas decisões. Aproveitei os meus conhecimentos em romance histórico. Fiz bem. O romance 'O Mosteiro e a Coroa' foi publicado e premiado, o ‘estudo’ ainda está à espera que os editores se decidam. Estamos em Portugal, professor Joaquim Fernandes.

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A entrevista literaria

>> segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009


23. A entrevista literária

Como sou curiosa do que se diz em matéria de livros, logo que há na televisão um programa dito ‘literário’, lá me têm como atenta auditora. E entrevista a escritor publicada em jornal ou revista também pode contar com esta leitora. Gosto de saber como o escritor enfrenta o acto da escrita, interessa-me a sua opinião sobre temas literários, e por pouco que diga, alguma coisa lá ficará.
Em televisão os programas são em geral curtos, o tempo televisiva é caro, as grandes entrevistas não são para discutir literatura. O entrevistador não levanta problemas, não têm dúvida quanto à excelente qualidade da obra de que se vai falar. Olha para o entrevistado com respeitosa simpatia, ouve com ar compenetrado as suas opiniões e divagações.
De alguns percebe-se que de literatura pouco sabem, e de livros pouco mais conhecem do que as ultimas novidades de autores portugueses e de alguns autores americanos. Conhecem talvez a literatura sul americana e africana, da literatura do nosso continente é que estão um pouco esquecidos. O que não tem importância, porque os ouvintes também nada sabem.
Uma escritora francesa, de quem se ia lançar o primeiro livro, conta como o seu director literário, que estava também a cargo das relações públicas da editora, propusera filmá-la numa entrevista e fazer um vídeo para juntar ao comunicado que se enviaria aos médias.
A autora gostou da ideia. A entrevista dava-lhe ocasião de ganhar algum à vontade para falar no seu romance. A coisa não teria nada de profissional, nem tinha essa pretensão. Uma óptima ideia.
Aceito-o. O que penso é que não se pode confundir duas coisas tão diferentes como a entrevista literária, e a apresentação para fins comerciais de um livro por meio de uma troca de impressões e de amabilidades entre um autor e um apresentador.
Os leitores de entrevistas escritas são um pouco mais exigentes do que os auditores da entrevista de televisão, e a qualidade do entrevistador é outra. Há naturalmente bons e maus entrevistadores. Há o ‘conhecedor’, que sabe tanto ou mais do livro que o seu autor, encontrando nele o que o seu criador nunca imaginou. Há o entrevistador socialmente empenhado, unicamente interessado em romances que foquem problemas sociais, há a entrevistadora feminista, há o entrevistador das estrelas do momento. O facto é que se banalizou o género.
Originalmente, a entrevista literária não era feita a principiantes, e não era o primeiro livro de um autor que se discutia. A entrevista era feita a alguém que já tinha uma obra, era da sua obra que se falava e destinava-se a leitores com conhecimentos e gostos literários. Felizmente ainda se fazem entrevistas deste tipo.
Tanto quanto sei o género nasceu em fins do século XIX e em França, onde a literatura sempre foi considerada um tema sério. Num livro intitulado “Lire, écrire et en parler”, “Ler, escrever e falar nisso”, que contém uma colecção de cinquenta e cinco entrevistas publicadas na revista Lire entre 1975 e 85, Bernard Pivot, um dos entrevistadores, introduz a obra com um dialogo imaginado sobre o que seja esta curiosa coisa que é a “entrevista”.
Traduzo:
--A propósito-- pergunta um dos interlocutores --de quando data esta mania de ir chatear escritores em suas casas para os bombardear de perguntas espantosas sobre os seus livros e a sua vida?.
--Desde o fim do século passado (sec. XIX), responde o outro --quando floresceram as primeiras entrevistas nas gazetas--.
--Mas foram os jornais, a rádio, a televisão que criaram essa engrenagem. Que satisfazem uma necessidade do jornalista e do público e não uma necessidade dos escritores alega o primeiro. De resto quando a grande imprensa não existia, os escritores não comentavam as suas obras, e não se sentiam frustrados por isso.
--Errado--responde o segundo--Os escritores sempre sentiram a necessidade de comentar as suas obras. Mas como a entrevista ainda não fora inventada, eles faziam preceder a sua obra de um prefácio, de uma espécie de ‘forma de usar’, que intitulavam – e não por acaso – ‘ao leitor’.*
Conto-me entre os leitores que lêem os prefácios, e, em matéria de entrevista literária, sou nela a terceira pessoa. Aquela que - sem que a sua presença seja notada - assiste à conversa, e a segue com o interesse de conhecedora.
No livro que citei, Pierre Boncenne, um dos autores das entrevistas, pergunta a Ângelo Rinaldi, autor de livros e critico literário, o que ele pensava da entrevista:
“Como critico literário em que posição coloca a conversa, a entrevista, literária?”
Ângelo Rinaldi: “Numa posição importante. Sou amador de diários íntimos, os romances que escrevo são na primeira pessoa. Gosto muito do tom de confissão. Leio portanto muitas entrevistas. É nos momentos de abandono, no fundo da conversa, que tempos por vezes a sensação de apanhar a pessoa, melhor do que na apreciação da sua escrita”.
Pessoalmente, prefiro saber do trabalho mental do autor, daquilo que o levou a escrever determinado livro, daquilo que ele acha mais importante na escrita. Mas o escritor é uma pessoa com as suas simpatias e antipatias, o seu lado pessoal têm importância, e uma entrevista bem conduzida mostrará as duas faces do autor.
O papel do entrevistador é primordial. A sua primeira pergunta dará o tom da entrevista, as seguintes farão desta uma conversa.
De entre as entrevistas recolhidas no livro que mencionei, houve duas que me interessaram particularmente, por se tratar da conversa com autores de livros que li e admirei.
A primeira era feita por Bernard Pivot a Robert Sabatier, autor de “Les Allumettes Suedoises”, a história simples de uma criança nascida e criada em Montmartre, livro que foi em França um sucesso enorme e totalmente inesperado,
A segunda entrevista, conduzida por Pierre Boncenne, era com Alexandre Zinoview, e tratava do seu “Hauteurs béantes”. Um contraste absoluto. A vida de uma criança de Montmartre, a vida de um intelectual na Rússia soviética. Um livro fácil, e um livro extremamente difícil. A entrevista a Pierre Sabatier estava a calhar para alguém com a sensibilidade de Bernard Pivot, a entrevista a Alexandre Zinoview exigia um entrevistador que estivesse intelectualmente à altura de um autor que era então professor de lógica na Universidade de Munique. A leitura dessas duas entrevistas confirmou a minha opinião de que a qualidade e o interesse da entrevista literária depende em grande parte do entrevistador.


De cartas à minha filha
22 de Maio 2002
Ligando ontem para o Canal 2 fui a tempo de ouvir no ACONTECE de Carlos Pinto Coelho a entrevista dele ao Mega Ferreira, que acaba de publicar uma novela com o originalíssimo título de “Amor”. Carlos Pinto Coelho começou por fazer uma pequena consideração sobre a pessoa do autor e a obra que acabara de publicar. E o que é que estes espantados ouvidos ouviram? Ouviram como, entre os encómios ao escritor, se falou na sua grande cultura, a qual se provava, entre outras coisas, pelas citações que ele fazia e os livros que mencionava na novela que se analisava, entre eles, e cito: "o Alexandria Quartett do Durell”. Virado para nós, público, Carlos Pinto Coelho tinha, ao dizer isto, a expressão de quem nos convidava a partilhar com ele da admiração e respeito por alguém que lera o Alexandria Quartett. O que é que me diz a isto? Repito: o que é que me diz a isto? Não sei há quantos anos li a referida obra, creio que também a leu, e nenhuma de nós jamais pensou que esse facto fosse qualquer coisa de admirável. Parece-me que nos nossos meios da alta intelectualidade reina agora a admiração pelos escritores que leram livros estrangeiros e os citam...........”

7 de Julho 2002
“Percorrendo as novidades literárias portuguesas, abri o novo livro de um autor chamado Possidónio Cachapa, que se intitula “O Mar por cima”. E a primeira coisa com que deparo ao abrir o livro, e não estou a exagerar, a primeira coisa com que deparei foi com a inevitável descrição dos protagonistas na cama,............ O livro terá com certeza sucesso. Basta ver que já veio no DN a inevitável entrevista da Maria Teresa Horta ao referido autor. Eis algumas das perguntas que ela lhe fez: “Porque é que este seu livro é tão arrogante? Escrever, para si é um desafio? No seu romance o sítio de onde se parte é o sítio onde se chega?” As respostas do autor entrevistado estiveram à altura: “Eu deixo-me ir um pouco na crista da onda, para usar expressões marítimas que têm a ver com este livro. É como se cavalgasse no lombo da ferocidade.” E outra “O meu espaço é em espiral, como se eu estivesse concentrado na energia do percurso”. Não sei que mais lhe diga. Sei que me apetece berrar quando oiço estas perguntas e estas respostas.
PS. A minha editora pretendeu a dada altura que Maria Teresa Horta me entrevistasse. A entrevistadora espondeu que: só se eu fosse a sua casa. Declinei a honra”

27 de Outubro 2005
“Ontem, pelas oito e meia, ouvi uma entrevista espantosa no canal francês Telé 5 . A entrevistada era Benoite Groult, escritora feminista da qual nada li, mas cujo nome conheço. Tem 85 anos, mas parece 65. Estamos tão habituadas a esta nova moda, que é a entrevista televisiva, que nem realizamos que é extraordinário que haja pessoas que de boa vontade se coloquem diante de uma outra pessoa, e que por ela se deixem entrevistar, ou seja, se deixem interrogar sobre a sua vida e a sua personalidade. ....... Pois esta escritora, muito bem vestida, de calças e blazer, com os beiços de quem fez um lifting - como ela confessou que fez - mas nada ridícula, respondeu e fez considerações sobre as coisas mais íntimas da sua vida, com uma sinceridade admirável - ou incomodativa - como se isso fosse sua obrigação. Quanto ao ‘le sexe’, tema nº 1 da actualidade, até a entrevistadora, que já deve ter ouvido algumas, mostrou um certo espanto quando a jovem octogenária declarou que não sofria de ciúmes, e que até gostara muito quando seu marido Paul tinha ‘fait l’amour’ com uma senhora que tinham encontrado numa das suas viagens. Não sei se a dita também era octogenária, mas não eram muito novos nem ela nem o Paul, pelos detalhes em que se entrou. É verdade, ela anda de ski e vai pescar ‘la crevette’ . Como lhe digo, fez-me pensar nesta coisa curiosa que é “a entrevista”. Que um escritor não se importe, e até goste, de ser interrogado sobre a sua escrita e até sobre aquilo que o conduziu a ela, é compreensível, e na minha modesta maneira, já o fiz. Mas que isso nos obrigue a declarar tudo que somos e tudo que sentimos não entra na minha cabeça. De resto, foi agradável ouvir um bonito francês e frases claras e correctas.”

1 de Fevereiro 2006 quarta-feira)
“À terça-feira é dia em que - à hora das noticias - passa (no canal de não sei que número) um programa sobre leitura conduzido pelo Francisco José Viegas.
Ontem era entrevistado o José Rodrigues dos Santos, locutor do primeiro canal, mas, zapando para o dito canal, via-se o mesmo a ler as noticias. Do que podemos concluir que aqueles programas de leitura são pré fabricados, e que é uma treta quando o Francisco José Viegas debita no final um estribilho dizendo que “estivemos a falar de livros enquanto outros estão a ver novelas”. Não estava ninguém a ver novelas, porque não era hora delas, e eles também não estavam ali naquele momento a falar de livros, tinham estado
A entrevista era sobre o livro do nosso conhecido locutor, livro que já vendeu mais de 45.000 exemplares (que inveja!) , que se chama CODEX Nr. Tal, e que trata da descoberta da identidade do Cristóvão Colombo. Querem por força que o homem tivesse sido português e, segundo consegui perceber, no CODEX Nr. Tal há um investigador que descobre que ele era, não só português como judeu. Até aí tudo bem, num romance histórico podem-se idear identificações, o que já é menos bem é a entrevista ter sido conduzida como se o autor tivesse de facto chegado a conclusões historicamente certas. As perguntas eram feitas nesse sentido, e como não há ninguém mais corajoso - ou mais ingénuo - nas suas declarações do que o ignorante, o José Rodrigues dos Santos falava como se tivesse de facto descoberto a verdade sobre o caso. A meu ver, a culpa não foi dele, a culpa foi do entrevistador. Ele é sempre muito simpático com os seus convidados, o que – até certo ponto - está certo, mas neste caso nunca devia ter deixado a conversa fugir ao facto de se tratar de um livro de ficção, e das opiniões do autor serem puramente de ficção. Em vez disso, o entrevistador apoiava com a cabeça quando o José Rodrigues dos Santos fazia uma das suas afirmações históricas, e no fim entrou-se no surreal quando o autor fala num duque de Faro, coisa que nunca existiu, e quando os dois pareciam querer ligar o caso entre o duque de Bragança e D.João II, e a morte daquele, ao assunto em questão.
Ora Francisco José Viegas não é obrigado a ter conhecimentos profundos sobre o caso Colombo, mas devia ter estudado um pouco a coisa antes da entrevista. O que não seria difícil, porque, quando há anos se publicou um livro do Álvaro Barreto sobre o caso Colombo, as afirmações deste livro foram refutadas em quatro magníficas pequenas obras, uma da autoria de Vasco Graça Moura, outra de Alfredo Pinheiro Marques, outra do Luís Abrantes. Todas óptimas. Apoiado no conhecimento do que fora dito por especialistas, a entrevista teria tido outro valor e outro interesse.”

*Lire, écrire et en parler Dix années de littérature mondiale en 55 interviews publiés dans Lire Éditions Robert Lafont. 1985

Observações à margem
Os Livros de Afonso de Torres.
Se algum leitor desse texto quiser ajudar a decifrar o seu inventário,aqui vai uma pergunta. O que será nr..51 – A contersia de Justiça Luso 60 rs?

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