Escrita e leitura ao masculino e ao feminino

>> segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009




Escrita e leitura ao masculino e ao feminino

Homens e mulheres têm gostos diferentes no que escrevem e no que lêem. Acho eu. E tenho mais algumas ideias sobre esta coisa de leitura e escrita no masculino e no feminino. Tenho mesmo tantas ideias e tantas perguntas a esse respeito, que não tinha tenção de me lançar em tão vasto assunto. Uma frase de Patrícia Reis lida no blogue: Click(IN)VERSOS fez com que afinal me aventurasse nele, não na esperança de esclarecer o assunto, só para o abordar. Ao de leve, com os devidos cuidados e as necessárias atenções.
Patrícia Reis, a quem uma entrevistadora perguntava porque é que os relacionamentos amorosos estavam muito presentes nos seus livros, (curiosa pergunta, aliás) respondeu desta forma:
– Ora, porque é um livro de uma mulherzinha. (RISOS) Quando é um homem a escrever uma história de amor, ele está a meditar sobre a condição humana... Ora, escrevo também sobre a condição humana. Há vozes distintas em meus livros e escrevo uma história para cada um dos personagens. Não existe literatura feminina. Estou farta desta questão. As pessoas têm manias dos rótulos e dos gêneros. Por que? Os homens gostam mais de sexo do que a mulher? Isso é o que os homens gostam de pensar... “
A resposta era um pouco confusa, mas permitiu-me concluir que aquilo que a autora pretendia dizer, era que, para ela, não havia distinção entre literatura feminina e literatura masculina.
Confesso que estas declarações peremptórias me espantam. Sucedem-se os estudos sobre a escrita feminina e a leitura feminina, eu acabara de ler um livro sobre a leitura ao feminino*, o livro mostrava, nem que fosse pela sua abundante bibliografia, que a divergência entre leitura ao feminino e ao masculino é assunto de estudos e debates, e aqui tínhamos uma autora de ficção varrendo o assunto para baixo do tapete. Que escrita feminina e escrita masculina são igualmente literatura, ninguém discute, o que me parece incompreensível é que alguém seja da opinião que nada distingue uma da outra.
Parece-me o contrário. Creio que escritoras e escritores, leitoras e leitores se diferenciam na escolha dos temas da sua escrita e da sua leitura, e, que no que diz respeito à leitura, a diferença de gostos se nota-se já na criança.
Na escola que eu frequentava, o colégio alemão, havia de duas em duas semanas uma aula que era dedicada à ida à biblioteva para a escolha de livros por nós alunos. Lembro-me muito bem que, nas raparigas, a tendência era para a escolher de preferência livros, chamados "de rapariga", e que, no caso dos rapazes, a preferência ia para os livros de aventura, de piratas, de tesouros escondidos.
Havia também revistas destinadas a gente nova. Em inglês parece-me que se intitulavam respectivamente “Girls Own” e “Boys Own”, e as correspondentes revistas alemãs chamavam-se “Der gute Kamerad” (O bom Camarada) e “Wir Maedel” (Nós, raparigas). Eram diferentes, porque os editores partiam do princípio que gostos de rapazes e raparigas eram diferentes.
Não me lembra de um dos meus irmãos pegar na minha revista, mas eu lia a minha e a deles, Não era caso único, muitas raparigas leitoras liam também livros de aventura. O que era impensável era que rapaz lesse livro de rapariga. E a coisa não mudou com o passar dos anos. Enquanto uma mulher lê sem hesitar livros mais conotados com o gosto masculino, deve ser raro um homem pegar em livro especificamente feminino.
E já lhes deu para pensar nos contos de fada - um género de "ficção" também eles? Se seriam de autoria feminina, ou de autoria masculina? Se seriam destinados a raparigas ou a rapazes?
Ultimamente tem-se escrito muito sobre o simbolismo e o fundo psicológico dos contos de fada. É já um novo ramo da investigação literária, e, no entanto, creio que o assunto não foi ainda abordado sob este aspecto: a saber se os contos que há centenas ou milhares de anos brotaram da imaginação de narradores anónimos, se esses pequenos textos, levados por boca de terra em terra, eram da autoria de mulheres ou de homens e se eram destinados a um mesmo público de ouvintes. Creio que não, creio que alguns dos contos eram destinados a jovens - e até menos jovens - "ouvintes" masculinos, enquanto que outros, se destinavam sem uma dúvida a serem ouvidos por jovens - e até menos jovens - "ouvintes" femininas. Basta pensar no conto do "Capuchinho vermelho". As recomendações que a mãe do Capuchinho lhe faz: nunca se afastar de caminho, nunca dar atenção às palavras do lobo, se ele lhe aparecesse, recomendações mais extensas e explícitas ainda na forma francesa do mesmo conto, são recomendações que qualquer mãe já fez a uma sua filha. O "Capuchinho Vermelho", foi decerto inventado por uma mulher e decerto para ser contado a raparigas. Para as divertir e para as precaver. É um conto puramente feminino. Tal como a "Branca de Neve e os sete anões" é feminino, e tal como é puramente para rapazes e ideado decerto por homem o conto do rapaz que "saiu de casa para aprender a ter medo".
Quem se quiser dar ao trabalho de estudar os contos sob esse aspecto, distinguirá facilmente os contos 'femininos' dos contos 'masculinos’. Tal como - digam o que quiserem - se distingue hoje, a ficção feminina da ficção masculina. Há temas abordados por homens que poucas mulheres escolheriam para tecer uma história em sua volta. E vice versa. Tal como o faziam os narradores ambulantes de contos.
Creio que a mulher escreve e lê de preferência romances baseadas em factos e sentimentos concretos, não escreve ficção muito cerebral, ou muito fantasiosa. E quem diz escritor e escritora, diz leitor e leitora. Na sua leitura e na sua escrita, a mulher prefere normalmente romances com pessoas e coisas que possa visualizar, sentir, que se situem em meios que lhe sejam familiares. Raras vezes entra pelo fabuloso, por onde o homem recentemente tem enveredado com tanto êxito. E, mais uma vez, quem diz escritora, diz leitora.
Pareece-me que, com raras excepções a mulher leitora preferirá, se lhe propuserem a escolha - dando um exemplo concreto tirado da literatura sul-americana - ‘O Tempo e o Vento’ de Erico Veríssimo ao ‘Cem Anos de Solidão’ de Garcia Marques. Porque prefere o realismo verdadeiro ao realismo mágico.
É verdade, como já disse, que a mulher leitora lê, indiferentemente, livros de escritores e livros de escritoras, mas creio que há livros - e grandes - de autores masculinos, que a mulher leitora lê com menos agrado e menos facilidade. Procurando, assim de repente, um desses livros que julgo agradarem pouco às leitoras, lembro-me de ‘Moby Dick’, de Melville. Por mim falo. Forcei-me a lê-lo, mas sei com absoluta certeza que não lhe voltarei a pegar.
Já ‘Guerra e Paz’ de Tolstoy é livro para – em minha opinião - agradar tanto ao leitor masculino como ao feminino. Tem romance, tem retratos de mulher, tem pintura de costumes que bastam para ela, e tem retratos de homem, tem debates filosóficos, tem guerra - e discussão dela - que bastam para ele.
Pois nem todos são da minha opinião. Scott Fitzgerald tratava ‘Guerra e Paz’ de livro para homem. Como a filha (que teria então 18 ou 19 anos) não o tivesse conseguido ler até ao fim, ele repreendia-a por ter começado a lê-lo, sem estar preparada para isso: “You shouldn’t have started War and Peace, which is a man’s book and may interest you later”. **
É uma curiosa afirmação, mas muito verdadeira em um dos seus aspectos. Passados aqueles primeiros anos de leitora, em que a mulher lê quase exclusivamente o género “ficção”, surgem gradualmente novos interesses e com eles o gosto por outro tipo de literatura. Assuntos e problemas abordados em ‘.Guerra e Paz’, que não a interessavam aos dezanove anos, já a poderão interessar aos trinta ou quarenta.
Isto quanto à leitura. Na escrita, penso que a diferença entre literatura masculina e feminina não está tanto no estilo, que aí praticamente não há distinção óbvia, que a diferença, está mais nos temas escolhidos por uns e por outras e está na abordagem destes. Assim, por exemplo - a não ser nos romances policiais - as escritoras escolhem prioritariamente uma mulher como centro das suas histórias, enquanto os escritores escolhem prioritariamente homens como heróis, ou centro principal. Não o fazem decerto de propósito, nem um nem outra. Fazem-no instintivamente. Colocam prioritariamente (repito, prioritariamente, não me esqueço das grandes excepções) personagens do seu sexo no centro das suas respectivas ficções, porque são essas as que melhor conhecem.
A propósito. O “Nibelungenlied”, a saga dos Nibelungos, é em geral identificado com a pessoa do herói Siegfried, e portanto como um livro de homem. Foi coisa que nunca questionei. Até que um dia me deu no goto que o anónimo autor daquela saga, falasse tanto de vestuário. Comentei-o com a minha filha numa carta escrita em Setembro 2006: “.a respeito do Nibelungenlied. ......... Uma das coisas que me diverte, é a preocupação do autor com o vestuário das mulheres. Chego a pensar que se tratava de uma autora, porque as heroínas e as suas damas passam a vida a por e tirar vestidos,...”
Curiosa de aprofundar esse aspecto do livro, peguei nele de novo, e constatei com espanto que a primeira pessoa nele mencionada, não é Siegfried, é Krimhilde (Cremilde). Não a segunda, ou a terceira personagem, a primeira. A estória é a estória dela. Na segunda estrofe do poema lê-se:
“Crescia então nas terras de Borgonha uma rapariga de primeira nobreza, mais bela que todas as outras no mundo, chamada Krimhilde. Viria a ser uma linda mulher e muitos guerreiros deixariam a vida por sua causa.”
Por sua causa, é verdade, mas não ‘em sua causa’. A historia é muito mais a história de duas mulheres – Krimhilde e Bruenhilde – que se servem dos homens para as suas vinganças. Talvez não fosse escrita por uma mulher, mas é um livro feminino.
Leitura e escrita ao feminino e ao masculino, o tema é difícil, e é delicado. Não esqueço as grandes poetizas e as grandes romancistas, mas a grande literatura é “ao masculino”. Não tenho duvida a esse respeito, o que ignoro é a razão. Há o argumento da mulher a quem os homens durante séculos não permitiam que ...... Sem dúvida, mas não é só essa a razão. Há o papel de mãe para o qual a natureza a destinou, que rouba à mulher o tempo necessário para se dedicar a coisa tão absorvente como a escrita. E como se pode ela concentrar, como a grande literatura exige, quando vive em constante preocupação com a saúde e a educação dos filhos? O homem consegue abstrair, a mulher, não. Outras razões haverá. Não sei. E, confesso, que pouco me importo. Se o livro é bom, tanto se me dá que o autor tenha sido homem ou mulher.

* La lecture au féminin. La lectrice dans la litérature française du Moyen Age au XX siècle”,WBG Darmstadt

** F. Scott Fitzgerald On Writing editred by Larry W.. Phillips

2 comentários:

João Pedro Ferrão 25 de fevereiro de 2009 às 22:56  

Permita-me discordar quanto aos Nibelungos (que por acaso é um dos meus livros preferidos. É uma pena que não esteja traduzido para português). É certo que a história gira à volta de Kriemhild e da sua vingança, mas Hagen, Gunther e mesmo Siegfried são personagens largamente "masculinos", tal como o é a segunda parte do livro, que trata principalmente de combates, duelos e outros "feitos heróicos", prontos para animarem uma audiência masculina numa corte medieval. Até Brünhild é uma personagem masculina pois, apesar da sua beleza, é implacável e capaz de derrotar Gunther numa luta corpo a corpo.

Julgo que os detalhes dados aos vestidos e adornos das mulheres prendem-se com a questão da audiência masculina: ao ouvir a história, os homens necessariamente imaginavam Kriemhild ou Brünhild (ambas muito belas, segundo o livro). A descrição dos vestidos ajudaria - e muito - a terem uma imagem mais realista e - porque não? - atraente. É que, por muito que alguns digam que não, os homens reparam tanto na roupa das mulheres como elas.

Anónimo 27 de fevereiro de 2009 às 12:01  

A João Pedro Ferrão

Quando descobri o autor dos ‘Nibelungen ‘mencionando tantas vezes os trajes femininos, tirei talvez conclusões apressadas, ou antes exageradas. É evidente que isso só por si, não faz da histórias dos Nibelungen um livro ‘feminino’. Mas aquela pequena descoberta levou-me a considerar mais interessadamente as figuras que “conduzem” a história, e aí acho que não pode haver dúvida, que o papel das mulheres é preponderante.. E verdade que são os homens quem age, são eles que praticam actos heróicos, mas muitas, talvez as principais, das suas acções e das suas proezas nascem em desejos sugeridos ou inspirados por mulheres. E nem sempre por razões sublimes. Com Kriemhilde e Bruenhilde à cabeça.
É um livro ‘feminino’, não porque o autor fosse forçosamente uma mulher, mas com certeza, porque, sendo homem, soube – de forma genial - criar figuras femininas, que uma leitora reconhece como tais. Nas suas pequenas e grandes particularidades.
Gostei que me lembrasse, que a história era para ser contada. Tem razão, e isso contava para quem ideara a saga. Outro aspecto importantíssimo da questão era a audiência. Se era predominantemente, ou mesmo exclusivamente, masculina, seguiam-se decerto acesas discussões sobre este ou aquele feito, este ou aquele aspecto de uma acção.
Quem me havia de dizer que encontraria um leitor dos Nibelungen nesta curiosa experiência, que é escrever para um blogue? Espero que ainda nos venhamos a encontrar no debate de outros temas. Theresa

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