De livros. De os roubar, copiar e adoptar

>> segunda-feira, 2 de março de 2009



Livros. De os roubar, copiar e adoptar
Há meses vi roubar livros na FNAC do Chiado. Eu estava em baixo na secção dos livros, vi um homem subindo a escada, reparei como ele olhou para a direita, onde sabia estar um empregado, como pôs um livro no interior da aba do casaco, imagino que em algibeira praticada para o efeito. Subiu mais uns degraus, virou-se de novo para o lado perigoso, sossegou, pôs outro livro em outra algibeira na outra aba do casaco. A curiosidade. feminina sendo o que é, subi a escada um pouco atrás do homem. Vi como ele |à saída abriu o casaco com as duas mãos, como alguém que está com muito calor. Talvez para enganar os sistemas electrónicos? Se era esse o fim, conseguiu, levou os seus livrinhos.
Ignoro de que tipo de ladrão se tratava. Há os que roubam para revender, há os que roubam sem fins lucrativos, para si, para ler, ou estudar, porque gostam de os ter e não os podem comprar. Há outros. E que não actuam nas FNACs. São os amadores de livros raros e preciosos, os bibliófilos que não resistem à tentação de roubar o que não podem obter de outra forma. Talvez a rara primeira edição há muito ambicionada, talvez uma obra prima da impressão, um exemplar saído da oficina de Aldo Manuccio, por exemplo. Raridades tentadoras não faltam.. Houve ladrões bibliófilos que ficaram célebres pelo volume e qualidade dos roubos que cometeram e pela pessoa que eram. Citam-se larápios historiadores, homens de ciência e, o que, como católica lamento, pelo menos dois cardeais, um dos quais veio a ser Papa. Consola-me que se nomeiem também eminentes teólogos protestantes praticando a arte. Houve furtos de colecções completas. Num pequeno livro intitulado “Buchmenschen in Buechern” - em português, “O homem do livro na literatura” - o autor relata o caso do conde Libri, um nobre italiano, professor de física na Universidade de Pisa e no Collège de France, membro da Académie Française, redactor do Journal des Sciences, o qual, eleito para a comissão encarregada de elaborar o catálogo dos manuscritos antigos das bibliotecas franceses, aproveitou o acesso livre que lhes tinha para formar uma das maiores colecções privadas de obras manuscritas do seu tempo. Até ser descoberto.
Comum a todos os ladrões de livros, há, creio eu, a convicção que roubar livro não é grande crime.. É só um livro, não é?
Um tipo especial de roubo de propriedade literária é o plágio. Na Roma antiga designava-se por plágio o roubo de um escravo, de um homem que pertencia a outro. E um dia, não sei quando, passou a ser designado com essa palavra o aproveitamento da escrita de um autor por outro. O que nem sempre foi tido por condenável, note-se. De momento que aquilo ali estava para todos lerem, também ali estava para todos copiarem. Na antiguidade romana não deixou contudo de haver discussões sobre quem copiara de quem. ou quem se inspirava em que obra. Nos tempos dos trovadores, era praticamente impossível saber quem primeiro ideara os contos e as lendas e os romances, levados de terra em terra, de castelo em castelo, pelos contadores de histórias. Com a descoberta da impressão, e o autor começou a assinar as suas obras, já não apreciava que outro se aproveitasse do seu texto, dando-o como seu.
Até que “ sob a pressão das ideias românticas, se começa a desenvolver uma nova atitude em relação à literatura.” Traduzo este trecho de “Le Plagiat” da autoria de Christian Vandenloyse.*
“A estética da imitação que reinara nas letras desde as suas origens, é substituída pela estética da originalidade que levará a uma procura acelerada da novidade. O escritor é visto como pertencendo a uma raça à parte, o seu génio é magnificado e a sua escrita profissionalizada. A crítica literária que também se tornou profissional acelera essa tendência……” Começou a caça ao plágio. Descobrem-se plágios desde Shakespeare a Dickens, desde Corneille a Voltaire e por aí fora.
Voltemos aos dias de hoje.
Júlio Pinto, um jornalista satírico, que durante algum tempo enriqueceu o ‘Independente’ com óptimos pequenos artigos sobre livros e leituras, falava num desses artigos, intitulado “Talento imitativo”, de um grande êxito editorial que seria quase decalcado de outro. Dava exemplos. Assim lia-se no primeiro livro: “…o eco longínquo das vozes que me trespassam”, e no outro: “…trespassava-me o eco de longínquas vozes”. E ainda, no primeiro: ”Minha mãe abraçava-se a meu pai, intimando-o a viver”, e, no segundo: “…e os meus dedos intimavam-na a viver”.
Surge aqui a minha dúvida: será que o segundo autor copiou na verdade, propositadamente, aqueles trechos do primeiro autor? Não será antes que ele, tendo lido o outro livro, o tenha apreciado tanto que fixara algumas das expressões e instintivamente as usara também? Todo o escritor sabe quantas vezes lhe vêm à pena expressões que não são suas, que lhe ficaram de leituras anteriores, ou de livro em que se exprimia justamente aquilo que ele também queria dizer.
Eu que o diga. Em um dos meus livros de ficção a heroína relembra a viagem que há anos fizera no então chamado Sud Express quando, vinda de França, regressava a Portugal: a travessia das vastas terras de Castela, as paragens nocturnas nas isoladas estações, a sua entrada em Portugal pela madrugada. Eu, que já fizera a mesma viagem, e que lera A Cidade e as Serras, tive de me esforçar para não descrever a viagem da minha Margarida com as palavras com que Eça de Queiroz descrevera a viagem de Jacinto.
Não digo que não haja quem propositadamente alinde os seus textos com a seara alheia, mas há muito plágio involuntário, ou – digamos - de boa fé. Em outro dos meus livros meti a dada altura uma pequena história, que vinha muito a propósito. Tinha-a lido algures, com certeza, mas não fazia ideia onde fora, ou se alguém a contar. Passaram-se anos, não mais pensei nisso, e eis que agora, que estou a escrever sobre plágio, sei finalmente de onde tirei a ideia. Sei finalmente onde a li, e de onde a tirei. Foi no livro “Erdachte Gespraeche” (Conversas ideadas) de Paul Ernst, de uma conversa ideada entre Sócrates e Alcibiades.
Em “As Casas da Celeste”, Ema, uma das suas heroínas, diz:
“—Pois vá, a história da galinha. Não a vou contar toda, porque a Olga rebentava. Mas é uma história que eu aplico muitas vezes e que me dá muito que pensar. Dita depressa, é assim: ‘Uma mulher tem uma galinha. Vem a raposa, leva-lhe a galinha, e come-a. A mulher diz que a raposas é uma ladra e uma assassina. Mas a raposa acha que fez bem, ela vive de galinhas. A galinha, essa, em vida, comia vermes. A mulher achava muito bem que a galinha comesse vermes, que até lhe ficavam os ovos mais gostosos. Mas os vermes, esses, achavam que galinha era uma assassina”. E por aí fora....
Mea culpa,. mea culpa. Ao escrever aquilo, estava a escrever o que tinha na memória de um dialogo entre Sócrates e Alcibíades imaginado por Paul Ernst. Estava a plagiar. Só que não fazia ideia a quem plagiava.
Já me sucedeu ler em algum livro trecho em que reconheço mão alheia. Ainda há pouco me indignei ao reconhecer um ideia de Maupassant em autor (português) moderno. Até que me lembrei do meu próprio crime.
Como autora, ainda não tive a honra de ser plagiada, mas achei graça quando percebi pela leitura de uma autora light da nossa praça, que ela se dera ao trabalho de ler os meus livros. A descoberta do passado da mãe da sua heroína num livrinho de veludo encarnado, não queria dizer nada. O meu livrinho era de veludo azul. Mas quando a autora fala de “linhagem” a propósito de uma “boa” família do Estoril, a coisa já deu para pensar. É que “linhagem” não é expressão comum, e nunca se emprega em relação de famílias de hoje, por muito boas que sejam. Posso estar enganada, mas suspeito que a autora em questão leu um meu romance histórico passado em que se fala em linhagem. Sabia-se então o que isso queria dizer.
Como disse um autor francês, só o primeiro é que não copiou de ninguém: "le plagiat est à la base de toutes les littératures, excepté de la première, qui d'ailleurs est inconnue".
Recentemente surgiu uma nova forma de plágio. Um autor escreve um romance histórico, e publica no fim uma “bibliografia”. Isto feito, imagina que está livre de usar dos livros aí mencionados para seu próprio uso. Mas não está. É evidente que na sua maioria esses autores o fazem por pura ignorância do que seja bibliografia. Como autores de ficção ignoram que o facto de indicarem quaos os autores que leram para escrever o seu livro, não os autoriza automaticamente a usar partes do texto deles, adaptando-o ao seu. Uma bibliografia no fim do livro - coisa pouco usada em ficção - permite que se citem frases de algum dos autores consultados, mas sempre com a menção do seu nome e obra. Adoptar frases de outro autor na nossa obra quando, em ‘bibliografia’ no fim do livro indicamos que lemos essa obra, não deixa de ser plágio.
ªCrhistian Vandenloyse Le Plagiat
wwwletttres.uottava ca/vanden.plagiat.htm

6 comentários:

Daniel Abrunheiro 4 de março de 2009 às 12:45  

Thereza, bom dia. Duas notas:

1) o saudoso Júlio Pinto fundou e dirigiu o também saudoso jornal satírico O Fiel Inimigo, que era de uma mordacidade graciosa.

2) Plágio? Chamo-lhe a atenção para um célebre texto de Luiz Pacheco (também já Lá mora...), inserto num dos dois volumes de Textos de Guerrilha, em que ele prova, à socidade como à saciedade, que o famoso Fernando Namora roubou o famoso Vergílio Ferreira: e demonstra-o com centenas de comparações entre o Domingo à Tarde, daquele, e um deste que de momento não recordo.
Um bom dia, T. E obrigado pelo interesse vivo do seu blog.

Daniel Abrunheiro 4 de março de 2009 às 12:52  

Já sei: o livro do Vergílio era Aparição. O texto em causa do Pacheco era O Caso do Sonâbulo Chupista. O Luiz Pacheco era um desregrado, um libertino, um livre: o que se lhe quiser chamar, mas no caso vertente deu nota vinte no 20. Se sentir curiosidade, Theresa, veja esta entrevista em http://www.triplov.com/luiz_pacheco/Entrevista-GPereira/Molero.htm

Anónimo 4 de março de 2009 às 19:21  

Obrigada, digo eu, Daniel. Por mais que queiramos "atenuar" o delito de copiar do próximo, a verdade é que o plágio indigna. Eu espero sempre que a coisa seja 'involuntária', e quase não consigo perceber os que não o são, "mas que los há..." Que prazer pode ser escrever uma frase muito bonita, qando sabemos que não é nossa? Quando se trata de 'ideias' é diferente. Essas podem muito bem surgir ao mesmo tempo em mais que uma pessoa. É de resto um dos curiosos fenómenos da memória.
Só tarde descobri o Julio Pinto e foi uma revelação. Vou ler o que me recomenda. Estive tão metida em história, que muito da literatura portuguesa me escapou. Esta coisa dos blogues tem que se lhes diga. Até breve. Theresa CºBº

Daniel Abrunheiro 5 de março de 2009 às 07:50  

De facto, a blogosfera pode ser incrivelmente produtiva, desde que mantenhamos simultâneos espíritos crítico e selectivo.
Leio muito na net - prefiro o papel, mas procuro muito no ´ter. Tenho feito descobertas encantadoras, a todos os níveis - da pintura à música, da história à literatura. Sempre que descubro, aviso e partilho com o resto do (meu) mundo - do qual a Theresa faz agora parte, para minha alegria e proveito.

Anónimo 6 de março de 2009 às 16:47  

Já li e copiei para o meu bookmarks a entrevista de Luiz Pacheco, qu eo Daniel me recomendou. Aquilo que mais espanta a uma pessoa como eu, que viveu loge do meio intelectual dos cafés de Lisboa, é o entusiasmo literário que a indignação pelo plágio demonstra. Não sei se me faço entender. Hoje dir-se-ia -ah, plagiou? Mas o livro não é mau, eu até gostei. Ou coisa parecida. A paixão pela literatura como arte, já é muito rara, se é que existe. Em França, talvez. Obrigada por me ensinar a conhecer um lado da vida literária portuguesa, que eu pura e simplesmente não conheço. Mais uma coisa que a blogoesfera me está ensinando. Theresa CºBº

Daniel Abrunheiro 6 de março de 2009 às 18:43  

De certo modo, Theres, é uma "vingança": quem aprende (aqui) sou eu.
Aproeito para lhe recomendar um autor português injustissimamente posto de lado em "proveito" de inanidades comerciais tipo Sousa Tavares, JL Peixoto, Rodrigues dos Santos e quejandos: falo-lhe de Nuno Bragança, um gigante.

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