De bibliotecas de mulher

>> segunda-feira, 16 de março de 2009


29. De bibliotecas de mulher
Particular? Caseira? Domestica?

Creio que a formação de uma biblioteca própria, uma biblioteca particular, é mais coisa de homem do que de mulher. Mais de homem, mas não exclusivamente. Houve e há bibliotecas particulares de mulheres, e algumas escreveram sobre os espaços onde arrumavam os livros.
No século XIV Cristina de Pisano tinha os seus num pequeno “estúdio”. Di-lo no “Livre de la Cité des Dames”* em um verso de cinco linhas, que me encanta e tentei traduzir:
"une estude petite,
Ou souvent je me délite
A regarder escritures
De diverses aventures,
Si cherchais un livre ou deux"

"Um estúdio pequeno
onde muito me deleito
a olhar as escrituras
de diversas aventuras
e procurar um livro ou dois"

Imaginando uma sociedade onde as mulheres não seriam enaltecidas pelo seu nascimento ou beleza, mas pela suas virtudes e sapiência, Cristina devia ser um bocadinho maçadora. E quem sabe se não um pouco troçada. Em uma das numerosas miniaturas em que ela foi retratada, vimo-la no seu ‘studio’, dormindo uma soneca de livro na mão. Mas o ilustrador era decerto um homem, e, quanto a mim, quem escrevera aquelas cinco linhas merecia encabeçar um artigo sobre bibliotecas de mulheres.
Achei lógico procurar definições do que se tinha dito sobre o que fosse “biblioteca”, e uma das primeiras definições com que deparei, foi esta:
“Biblioteca é um espaço reservado aos livros, recheado de obras escolhidas, cobrindo diversas áreas dos conhecimentos humanos, e periódica e judiciosamente acrescentadas”.
Foi o bastante para me afastar do tema projectado.
Presumo que o autor da definição se estaria referindo a uma biblioteca publica, não a toda e qualquer biblioteca. É verdade que “espaço reservado aos livros, recheado de obras escolhidas, cobrindo diversas áreas dos conhecimentos humanos” são condições a que também uma biblioteca particular pode aspirar, mas “periódica e judiciosamente acrescentada” ?
Desafio qualquer possuidor de uma biblioteca particular a mostrar as judiciosas aquisições com que periodicamente a foi aumentando. Judiciosamente pressupõe que os livros acrescentados tenham sido adquiridos após judiciosa meditação sobre o seu valor e qualidade e a oportunidade de os adquirir. Onde fica a inspiração do momento conhecida de todos os grandes leitores? O apetite por aquele livro e não outro? A biblioteca particular não seria biblioteca particular, se não fosse uma colecção de livros escolhidos por apetite, por amor, raras vezes por terem sido objecto de meditação prévia. Escolha judiciosa das aquisições aplica-se a uma biblioteca publica não à de um particular.
Ainda estava às voltas com isto de “biblioteca judiciosa”, quando me vi enfrentada com a “biblioteca domestica”.
“...... é indisputável a declinação da biblioteca doméstica, da vontade e do orgulho de a ter, e também, valha-nos Deus! das condições para a conservar e aumentar”. lê-se em “A infelicidade pela Bibliografia” de Abel Barros Baptista.**
Talvez seja pouco razoável da minha parte, mas a definição deu-me vontade de rir. Biblioteca domestica? Consultei Cândido de Figueiredo, e lá está: --domestico: “relativo à casa, à vida íntima da família, familiar” etc. .
Em casa dos meus pais havia uma razoável quantidade de livros, mas a ninguém passava pela cabeça chamar biblioteca a uns armários e estantes com livros espalhados pela casa. E menos biblioteca domestica. Biblioteca tem uma conotação de qualidade e grandeza. Acho eu. E exemplifico.
Na véspera do dia 1 de Novembro de 1755, o senhor Joaquim José Moreira de Mendonça chegou à janela da sua casa, perto do castelo de São Jorge, e fechou-a rapidamente por achar que vinha de fora um calor estranho. Comentou-o com a família, e no dia seguinte viu-se que o senhor Joaquim José Moreira de Mendonça tinha razão de recear coisa ruim. O homem era grande amador de livros, e logo que o pior do tremor de terra passou, procurou averiguar quais as bibliotecas da cidade que mais tinham sofrido. Podemos ler o que ele viu no livro que depois escreveria, intitulado “História Universal dos Terremotos”*** (que sobressai com vantagem das odes e baladas que então se publicaram chorando a catástrofe)..
“Entre as muitas preciosidades que consumiu o fogo foi muito sensível aos eruditos a perda de muitas e numerosas livrarias, escreve o senhor Joaquim José. “Tem o primeiro lugar a biblioteca real, que era numerosíssima e excelsa. O senhor rei D. João V, o Máximo, a tinha aumentado cm grande número de livros modernos e todos os antigos que se descobriram pela Europa; e uma grande cópia de bons manuscritos, assim originais como cópias bem escritas, tudo efeito da sua sabedoria e magnificência.
A do marques de Louriçal enchia e ornava quatro grandes casas, e era esta selecta em livros raros e excelentes manuscritos. Tinha sido formada pelos Sábios condes da Ericeira e ultimamente aumentada pelo conde D. Francisco Xavier de Meneses, cuja sabedoria e vastíssima erudição ainda depois de morto admira Portugal e toda Europa-
A biblioteca do convento de São Domingos estava em duas grandes casas e tinha muitos livros raros e grande número de manuscritos, que para ela deixou o eruditíssimo beneficiado Francisco Leit\ao Ferreira. Foi obra do padre frei Manuel Gonçalves que a constituiu publica, com assistência de dois bibliotecários e renda grande para o seu aumento
No convento do Espírito Santo havia uma grande e selecta livraria, e outra chamada Mariana, em que se admirava a major colecção de livros que tratavam de Maria Santíssima, obra do padre Domingos Pereira.
Ficaram também reduzidas as cinzas excelentes e antigas livrarias dos conventos do Carmo, São Francisco, Trindade e Boa Hora. Tiveram o mesmo sucesso todas as dos palácios, que arderam em que havia algumas muito estimáveis.
As particulares foram muitas e entre estas era muito preciosa a do inquisidor mor José Silveira Lobo, por numerosa e selecta.
Em cinco casas de mercadores de livros franceses, espanhóis e italianos e 25 lojas e casas de livreiros portugueses se consumaram grandes livrarias de que podiam formar muitas copiosas e excelentes.”
Bibliotecas nas grandes casas, livrarias de mosteiros. livros de particulares. Colecções de livros de qualidade, alguns raros, de manuscritos.
Poucos anos depois, fazia-se em Paris leilão dos livros que haviam sido de Madame de Pompadour, amantíssima companheira de Luís XV de França, mulher culta e grande leitora. “Ela lia os seus livros, não os tinha simplesmente como adorno dos seus quartos”, escreve Nancy Mitford.****. Ao todo leiloaram-se 3525 volumes, divididos nas seguintes categorias:87 traduções dos clássicos, 25 gramáticas e dicionários franceses, italianos e espanhóis. 844 livros de poesia francesa, 718 romances, entre eles romances ingleses em tradução francesa, 32 livros de contos de fadas, 42 obras de história religiosa,738 de história e biografia;235 livros de música 5 livros de sermões, incluindo os de Bourdaloue, Massion e Phénelon; 215 livros de filosofia 75 livros da vida de escritores.
Retirada da venda pelo seu irmão, o marquês de Marigny, foi um livro intitulado “Représentations de M. de Lt. General de la Police sur les Courtisanes a la Mode et les Demoiselles de Bon Ton, par une demoiselle de Bon ton”. Devia ser o que então se designava por livro ‘galante’, e não foi decerto para proteger a fama da irmã que o marquês retirou do leilão as confidências de uma “demoiselle de Bon ton”.
Os livros de madame de Pompadour eram na sua maioria encadernados em marrocain com as suas armas no rosto. Era uma biblioteca particular, pessoal,. Mas era uma biblioteca doméstica?
Mais ou menos por esses anos temos na Alemanha a duquesa Anna Amália de Weimar fundando a biblioteca que ficaria famosa como uma das mais importantes bibliotecas de literatura alemã e arquitectónicamente, uma das mais bonitas. É que os amadores queriam os seus livros em ambiente digno deles, e achavam-nos por sua vez dignos de os “ornamentar” a eles próprios. Sobretudo a elas, neste caso. Madame de Pompadour quis sempre ser pintada com um livro na mão, e a moda perdurou. Em princípios do século XIX o pintor David imortalizava a bela Madame Récamier com os seus livros como pano de fundo
Eram bibliotecas domesticas um pouco especiais essas que nasceram nos séculos XVII e XVIII nas grandes casas da Europa.
O século XIX trouxe o livro a outras camadas da sociedade. Não deixou de haver bibliotecas particulares de grandes coleccionadores, de bibliófilos, mas mesmo as famílias menos abastadas tinham agora livros em suas casas: os volumes dos clãssicos, os primeiros romances de mulheres para as senhoras, as obras de história e filosofia para o homem da casa. Nas casas havia um ou dois armários com livros “bons” para toda a família, eram verdadeiras bibliotecas familiares.
Nos nossos dias não deixámos de ter colecções de livros, arrumados agora à nossa maneira. Hesitamos em tratar de biblioteca a umas estantes que nem sempre primam pela beleza arrumadas nos espaços em que melhor convém. Parece que são bibliotecas domesticas. Adiante!
Á falta de tratar - como prometera - de bibliotecas de mulheres, cito o que duas leitoras escreveram sonre os seus livros.
A grande leitora que foi a marquesa de Sévigné levava os seus livros atrás de si quando ia para a sua casa de campo. Periodicamente tinha de refazer as finanças, abaladas pela vida de Paris, e recolhia-se - por vezes na companhia do filho, grande leitor também ele - à sua propriedade dos ‘Rochers’ na Bretanha. Levava livros, e dava-lhes um arranjo em local adequado. Descreve-o à filha, em carta de 5 de Junho de 1668
"Trouxe para aqui uma grande quantidade de livros escolhidos; vou arrumá-los daqui a pouco. Não se pega num, seja ele qual for, que não se tenha vontade de logo o ler todo inteiro. Toda uma prateleira de devoção, e que devoção! Meu Deus, que inspiração para honrar a nossa religião. Outra é toda de obras admiráveis de história; outra de moral; outra de poesia e de novelas e de memórias. Aos romances desprezámos, foram relegados para os pequenos armários. Quando entro neste gabinete, não percebo porque de lá saio. É digno de ti, minha filha".
Não sou uma madame de Sévigné, mas também tenho uma filha vivendo longe e também lhe escrevo sobre livros, os meus e os de outros:
“mando-lhe um recorte mostrando o Dr. xxx xxx na sua biblioteca, escrevi-lhe em carta de xx de 2002. Interessam-me imenso as bibliotecas particulares das actuais figuras gradas cá da terra, e a primeira coisa que procuro observar quando vejo fotografias deles, tiradas nos seus interiores, são os arranjos dos seus livros. E o que lhe digo é que me consolam da minha pelintrice. Não vou a férias às ilhas do Pacífico, não tenho Mercedes (com pena), não tenho montes alentejanos. Em resumo, sou uma pelintra ao pé da maioria dos outros possuidores de muitos livros, mas a minha biblioteca, ou livraria, ou quarto de livros, ou o que lhe quiserem chamar, compara-se favoravelmente com aquilo que, em matéria de arrumação de livros, me é dado ver dos interiores de personagens da nossa vida política e social em jornais e revistas”.
Biblioteca particular, familiar, caseira, domestica?
• Christine de Pizan, La Cité des Dames Paris, 1405
** Abel Barros Baptista A Infelicidades pels Ribliografia. Crónicas
***Joachim Joseph Moreira de Mendonça, Historia Universal dos Terremotos...... e as particularidades do ultimo. Lisboa 1758
****Nancy Mitford, Madame de Pompadour Hamish Hamilton, London, 1954

1 comentários:

TiagoLouriçal 7 de abril de 2010 às 14:09  

É um facto que grande parte dos livros da Biblioteca que era pertença da Casa de Louriçal por ocasião do terramoto de 1755 foi consumida pelas chamas, mas, actualmente ainda existem alguns exemplares com o super-libris de D. Francisco Xavier de Menezes, 4º Conde d´Ericeira com as encadernações... lambidas pelas chamas.
É tradição na família afirmar que existia uma biografia de Carlos V conservada no cartório, diz-se que manuscrita pelo próprio.

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