Das origens da leitura

>> segunda-feira, 30 de março de 2009


Leitura silenciosa?
Até há pouco, se me perguntassem o que sabia sobre as origens da leitura, teria resposta pronta, papagueando de hieróglifos, de sinais gravados em barro, de como esses sinais eram destinados a transmitir um recado, e até de como e onde nascera o alfabeto..
Não me pretendendo perita no assunto, julgava saber o bastante para me sair bem da pergunta, e para não me espantar com alguma nova revelação sobre a materia. Há, é verdade, revelações e revelações. Não há dia em que não tenhamos ocasião de dizer: – tem graça. isto não sabia eu. Mas que fiquemos abismados de espanto, é que não sucede todos os dias.
Pois sucedeu-me agora. Num livro sobre a história da leitura leio que: “Quando, onde. e porque razão as pessoas começaram a ler, isso não sabemos. A questão do início da história da leitura, está ligada a tantas outras questões, que não é fácil responder à pergunta”. O autor, Hans-Joachim Griep, levanta em seguida outra questão: “quando é que se começou a ler para dentro, silenciosamente?”.
E aí é que eu fiquei de boca aberta e ainda estou, se assim se pode dizer. Ignorava que a leitura nem sempre fora a leitura silenciosa que hoje achamos natural. Pensava que de momento que se lia, que se lia, ou alto ou baixo, ao gosto de cada um. Não sabia que se soletravam alto os sinais, as letras, que só se lia alto, porque não se conhecia outra forma de o fazer.
Griep escreve a esse respeito, que é a partir do séc. V.a.C. que há provas da existência da leitura silenciosa na Grécia. Que por essa altura já havia leitores, não muitos, decerto, que, pela interiorização da voz, estavam em condições de ler mentalmente. Tudo indica que até lá a leitura estava ligada à voz do homem, que os sinais com que se escreviam palavras eram soletrados, lidos, em voz alta” .
Em fins do séc. V. a. C. a “leitura silenciosa” já se teria, segundo o autor, divulgado em Atenas “ao ponto do público o entender como coisa normal”, mas muito poucos dominavam essa técnica.
“A leitura silenciosa provou ser uma técnica, que permitia ao leitor absorver mais textos em menos tempo. O que era de importância capital, dado que o número de textos de todos os géneros aumentava constantemente. Por outro lado, a leitura silenciosa era dificultada de maneira que hoje não podemos imaginar pelo facto de se usar então uma escrita sem intervalos e sem pontuação”.
Foi por isso uma técnica que levou muito tempo a se generalizar. Na Roma imperial ainda se lia maioritariamente alto, nas escolas da Idade Média ainda se lia alto.
E eu ainda estou a digerir esta revelação: que nem sempre se leu silenciosamente, mentalmente, para si.

Como se teria dado esse passo em frente que foi a descoberta da leitura silenciosa? Talvez o problema estivesse no ar, fosse hipótese que há muito se discutia. Talvez fosse invenção de um só, e por ele revelado ou ensinado. Posso imaginar um ateniense, passeando na ‘agóra’, e confiando aos amigos, que encontrara a forma de ler para dentro, para si, que já não precisava de ler alto.
Para lembrar - a quem não faz palavras cruzadas - o que era a ‘agóra’ na vido dos atenienses, recorro à ‘Historia da Filosofia Grega’ de Luciano de Crescenzo, e confesso que o faço para ter pretexto de falar no autor. Não sei se o seu primeiro livro ‘Assim falou Bellavista’ - um daqueles livros que não envelhecem - foi publicado em Portugal, mas em 1988 a Presença publicou o primeiro volume da sua História da Filosofia, ‘os Pré-socráticos’. Na introdução, Crescenzo explica a Salvatore, porteiro da casa do professor Bellavista, e um dos membros da sua roda de ouvintes e interlocutores, o que seja filosofia, e começa por lhe explicar o que se entendia na antiga Grécia por “agorazein”.
“Agorazein”, explica ele a Salvatore, significava ir até à praça – à ‘agóra’ - ouvir o que por lá se dizia. Significava ”comprar, vender, conversar e ver os amigos; mas significava também sair de casa sem um objectivo preciso, vaguear ao sol até à hora do almoço............”Agorazonta”, o particípio desse verbo, descrevia a maneira de andar de quem praticava o ‘agorazin’, esse caminhar lento, de mãos atrás das costas, com um percurso quase nunca rectilíneo.”
“Pois bem, caro Salvatore” – informa-o o autor, “a filosofia grega deve muito a esse hábito peripatético dos meridionais.”
Não me parece pois fantasioso da minha parte, imaginar que foi num dessas passeios ‘na agóra’, nesse ‘ensinar passeando’, que um ateniense terá levado a conversa para a leitura e confiado aos companheiros, que conseguira “ler para dentro”. Que, para ele. a leitura já não consistia numa acção mecânica, ocupando a voz e a vista, já que, na leitura mental, esta podia ser acompanhada de reflexão, que era como que uma alternativa à conversa. Que o leitor, tal como em conversa na ‘agóra’ discutia o que estava ouvindo, na leitura silenciosa, podia discutir em mente, par si, o que estava lendo,.

*Griep, Hans Joachim Geschichte des Lesens, Wissenschaftliche Buchgesellschaft



Observações à margem
Eça de Queiroz não tinha grande opinião quanto aos gostos literários dos jovens portugueses seus contemporâneos. Em 1871, tinha ele 26 anos, escrevia dos homens: “Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. Lê-se Ponsson du Terrail - emprestado!”
Quanto às meninas casadoiras e jovens mulheres portuguesas, que contraste com as senhoras inglesas e franceses, essas “lêem ou para si, ou em voz alta aos irmãos mais pequenos ou aos filhos, livros de história natural, curiosas vidas de animais, viagens. ..... Entre nós lêem Ponsson du Terrail ou Dumas Filho” .
Não sei que mal tinha que as meninas portugueses lessem as aventuras de Rocambole e de d’Artagnan, e duvido que as francesas e inglesas fossem aqueles modelos de leitoras. De resto, foi o princípio da frase de Eça de Queirós: “Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história” que sempre fixei. Porque essa opinião ainda me parece actual. Enquanto os primeiros pouco espaço ocupam, Ponssons du Terrail cobrem as mesas das livrarias, e são eles que sobretudo se compram. Não tenho nada contra livros de entreter. Tenho-os e leio-os, e se tivesse vivido naqueles anos teria decerto lido du Terrail. Mas não só. É que os outros também entretêm. Do que cada um se tem de convencer por si próprio.

5 comentários:

J 1 de abril de 2009 às 02:07  

Interessante reflexão. Também sou das "histórias" e também me estava a escapar essa subtileza da evolução da leitura oral para a leitura mental, se assim se pode dizer. Realmente é curioso e esse fenómeno da ler para dentro, com as consequentes sinapses que terá criado na mente humana no sentido do auto-conhecimento, da interiorização, da consciencialização de um eu subjectivo e criador, pode estar relacionado com o que acabaria por resultar no primado (humanista, potenciado pelo cristianismo original) do indivíduo, da dignidade e da liberdade individual, que hoje se verifica, pelo menos na cultura ocidental. Enfim, já estou a divagar, mas é realmente uma questão curiosa.
Já quando a Theresa refere que «Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história», não concordo tanto com este pessimismo. Diria antes que nunca houve tanta apetência por leitura de qualidade e obras de não-ficção, ensaio, ciências sociais, economia, etc. É pelo menos a minha percepção, que fui dois anos livreiro até há pouco tempo e que também tento andar atento a esta coisa dos livros. Ainda estamos longe dos níveis de outros países europeus, em termos de literacia ou leitura, mas tem havido uma evolução enorme nestas áreas no nosso país desde 74, sobretudo com democratização do ensino universitário, com o aumento do poder de compra da população em geral e com a óbvia questão da liberdade de publicar e de ler. O Eça falava de um país com 70 ou 80 por cento de analfabetos...
Por outro lado, antes o Nicholas Sparks que coisa nenhuma... sempre pode constituir um ponto de partida para leituras mais interessantes e profundas. No caso dos romances históricos, tive vários casos de gente lá na livraria que evoluiu do Codex 632 para o Baudolino com muito prazer e que depois vinha agradecer a orientação e o facto de lhes ter proporcionado entrada no riquíssimo universo literário do Eco.

theresa S. de Castello Branco 1 de abril de 2009 às 09:59  

É coisa de espantar, não é? Eu continuo a meditar sobre a revolução que foi essa descoberta da leitura mental. Fiz a experiência, li um trecho alto, e a evidência é tal que apetece dizer, mas sua burra, como é que não percebeste isto à mais tempo. Griep desenvolve esta questão e ainda estou a entrar nela. Quando souber um pouco mais, talvez escreva mais sobre este assunto. Não sei bem como dizer, mas são estas revelações, que me fazem quase vir as lágrimas aos olhos, que eu queria que outros soubessem, que outros partilhassem o espanto, sentissem a veneração pelo que o espírito humano fez para crescer, e foi isso que me fez escrever o que se seguiu. Bem sei que o Eça exagerava, e na altura as condições eram diferentes, também sinto que há uma diferença no clima intelectual, mas ainda tenho as minhas duvidas quanto ao gosto pelo saber. Sobretudo pelo gosto de aprofundar. Em matéria de romance histórico permita-me que lhe sugira a leitura do livro de uma autora pouco conhecida e lida, mas que é de agradável leitura e deita alguma luz sobre um dos assuntos que o interessa, a vocação religiosa. O livro chama-se “O mosteiro e a coroa”. Irei em breve à sua casa virtual. Até lá. Theresa

theresa S. de Castello Branco 1 de abril de 2009 às 10:02  

É coisa de espantar, não é? Eu continuo a meditar sobre a revolução que foi essa descoberta da leitura mental. Fiz a experiência, li um trecho alto, e a evidência é tal que apetece dizer, mas sua burra, como é que não percebeste isto há mais tempo. Griep desenvolve esta questão e ainda estou a entrar nela. Quando souber um pouco mais, talvez escreva mais sobre este assunto. Não sei bem como dizer, mas são estas revelações, que me fazem quase vir as lágrimas aos olhos, que eu queria que outros soubessem, que outros partilhassem o espanto, sentissem a veneração pelo que o espírito humano fez para crescer, e foi isso que me fez escrever o que se seguiu. Bem sei que o Eça exagerava, e na altura as condições eram diferentes, também sinto que há uma diferença no clima intelectual, mas ainda tenho as minhas duvidas quanto ao gosto pelo saber. Sobretudo pelo gosto de aprofundar. Em matéria de romance histórico permita-me que lhe sugira a leitura do livro de uma autora pouco conhecida e lida, mas que é de agradável leitura e deita alguma luz sobre um dos assuntos que o interessa, a vocação religiosa. O livro chama-se “O mosteiro e a coroa”. Irei em breve à sua casa virtual. Até lá. Theresa

J 1 de abril de 2009 às 14:26  

Obrigado pela sugestão, vou pesquisar melhor essa dica. E será sempre bem-vinda ao meu blog. Ultimamente não tenho tido muito tempo para o actualizar, mas pode ser que tenha algo que lhe interesse nos arquivos.

landing page design 16 de março de 2011 às 09:14  

Especially by the taste of deepening. In terms of historical novel let me suggest,

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