>> terça-feira, 20 de abril de 2010

As fontes em Zurara
A consulta das fontes, indispensável como é, não deixar de ter os seus perigos. Um pequeno documento pode deitar abaixo uma conclusão laboriosamente alcançada. Um texto até ali desconhecido, pode iluminar de forma pouco lisogeira um feito glorioso do passado e até ofuscar a fama dos seus heróicos protagonistas. Que fazer nesses casos? Esquecer o documento incómodo para a nossa conclusão? Manter a conclusão, e esperar que ela se aguente sobre as suas fracas pernas? E o que fazer com texto que, pelo que nele se afirma, vai modificar um ponto histórico consagrado? E se o referido texto contém juntamente com dados indesejáveis, dados positivos, desejáveis?
Recorde-se a esse respeito o caso da ‘Crónica da conquista da Guiné’ de Zurara. O texto foi descoberto em Paris, em 1837, entre os manuscritos da Bibliothèque Nationale. Ferdinand Denis, o homem que fez a descoberta, revelou a existência da obra ao ministro de Portugal, este, por sua vez, transmitiu-o ao visconde de Santarém, e este, entusiasmado, iria promover a publicação do texto com um prefácio seu. A obra viera no momento certo, pois que, com ela, se provava que tinham sido os portugueses a explorar pela primeira vez a costa da Guiné, e não os franceses, como estes pretendiam.
Ora esta conclusão baseava-se em provas indisputáveis. Que eram os relatos de viagem, , que os homens que a realizado, tinham ditado para o infante D. Henrique. D. Afonso V, que encomendara a obra a Zurara, sugerira que ele consultasse para ela os referidos relatos. Zurara fez mais, publicou os ditos relatos. Não os interpretou à sua maneira, deu-os na sua forma original. Com o resultado que não há crónica tão pouco ‘crónica’ como esta. Não é o relato dos feitos de armas de cavaleiros de grandes nomes. Creio que, a não ser o Infante não há fidalgo mencionado. É um livro de aventuras, vividas e narradas por homens simples, por gente do mar.
Não eram explorações científicas aquelas ao longo da costa da Guiné. O Infante queria saber como aquilo era, como era a gente, que rios desaguavam, que enseadas havia. Pois bem, os donos de boas embarcações de pesca, que conheciam bem a costa, estavam prontos a ver aquilo melhor, a ir até um pouco mais longe. A coisa era proveitosa, o Infante contribuía, e a venda dos negros que se capturassem era um óptimo negócio. Mesmo dando ao Infante a sua parte. Tudo muito natural, não chocando ninguém.
Nos séculos XIX e XX é que já havia outras ideias quanto a compra e venda de escravos, e aliar a figura do grande Infante a esse negócio não apetecia. A crónica de Zurara, muito bem vinda como fonte, pela qual se provava a primazia portuguesa na exploração da costa oeste africana, era também uma fonte, , para reconstituir a figura de D.Henrique. Mas uma fonte que se teria gostosamente dispensado. A crónica continha também a descrição do aspecto físico do Infante. Zurara conhecera-o bem, aliás, ele ainda era vivo quando o cronista iniciou a sua escrita. O príncipe era um homem alto e forte, de largos ombros, tês clara, queimada do sol e cabelo levantado. Um retrato convincente. Sucedia, porém, que junto do texto de Zurara se via uma miniatura de um homem que tinha uma divisa igual à do Infante, ou muito parecida, e esse homem, de pele escura, ombros estreitos e cabelo preto penteado para a testa, não se parecia em nada com a descrição de Zurara. Os primeiros investigadores decerto o notaram, mas não deram grande importância ao caso. Toda a gente gostava de ter um retrato visual do Infante. E, depois, quem é que iria ler aquilo? Optou-se por ignorar uma informação histórica de fonte insuspeita. Historiadores agiram como crianças que esperam “que não se dê por isso”.
A crónica de Zurara exemplifica como provas históricas se podem, aproveitar de várias maneiras.
Observação à margem
Devem ser poucos os que leram esta crónica. E não é leitura que se recomende a leitores de história, que a querem como eles acham que ela devia ser, ou ter sido. Para os que aceitam a história como ela foi, mesmo que por vezes deplorando que assim fosse, para esses, a leitura das aventuras daqueles geógrafos improvisados é bem interessante.

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