VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAP. II AS PRIMEIRAS MONJAS EM LORVÃO

>> terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Em l211 - pouco antes da conclusão do ‘negócio’ de Lorvão - dá-se a morte de D.Sancho I, e o seu testamento iria complicar a vida de D.Teresa, impedindo-a de se dedicar de imediato e directamente, como de outra forma decerto o teria feito, ao mosteiro de que era a novel padroeira. O testamento de D. Sancho seria contestado pelo seu sucessor, alegando o novo rei, e com alguma razão, que seu pai favorecera exageradamente as suas irmãs, com disposições que o prejudicavam a ele, e, consequentemente, ao Reino. Forte das suas razões, D. Afonso II não se mostrava disposto a largar mão das vilas e terras que seu pai destinara às Infantas. Estas, decididas a defender o que consideravam seus legítimos direitos, pegaram em armas contra o irmão.
            A luta que então se acendeu duraria mais de dez anos. D.Teresa e D. Sancha, provavelmente levando consigo sua irmã mais nova, D.Branca, e a filha de D.Teresa, que viera de Leão com a mãe, deslocavam-se ao sabor dos incidentes da contenda, vendo-se D. Teresa obrigada a delegar em outrem a administração do seu mosteiro de Lorvão. Alguns autores dizem que de início fora uma laica, uma aia da Rainha, quem administrara o mosteiro nesse primeiro tempo, outros autores afirmam que houvera uma primeira abadessa, de nome Goda. Em história monástica não se deve ignorar uma tradição oral, e creio que se podem conjugar as duas tradições. A primeira abadessa não foi uma D.Goda, isso está provado por documentos, mas é muito provável que tenha existido uma senhora desse nome, muito possivelmente aia da Rainha, a quem esta confiou o mosteiro enquanto não encontrava uma abadessa adequada. O que não tardou
      Em l213 há comprovadamente uma abadessa em Lorvão. Chama-se Vierna ou Ivierna - nome que não se encontra em nenhuma família portuguesa coeva - e foi decerto muito cuidadosamente escolhida pela Rainha padroeira. Teria de ser de grande competência e autoridade a mulher que iria tomar conta dum mosteiro que durante séculos fora de homens e dirigido por abades que haviam deixado a sua marca na vida religiosa, cultural e económica da região conimbricense. É fácil de imaginar com que desconfiança os vizinhos de Lorvão - grandes e pequenos - olhariam para a primeira cabeça feminina daquele mosteiro.
Obrigatoriamente, portanto, a primeira abadessa de Lorvão teria de ser uma mulher que convencesse, que se impusesse como pessoa e como administradora, com competência e autoridade para dirigir material e religiosamente o grande mosteiro. Caber-lhe-ia ainda uma missão especial, a de instruir as monjas beneditinas que estavam em Lorvão, nos usos e costumes da sua nova Ordem. A primeira abadessa teria portanto de ser alguém que estivesse a par dos usos de Cister. Em Portugal, Lorvão seria o primeiro mosteiro de religiosas cistercienses. Em Espanha existiam já alguns, e um deles era o mosteiro de Gradefes, que nascera em 1168 junto da capital leonesa. Fora fundado por Teresa Peres, uma viúva rica que seria a primeira abadessa do seu mosteiro.
A infanta D. Teresa, enquanto rainha de Leão, tivera forçosamente contactos com o mosteiro e a sua fundadora. Ora é sabido, que a infanta portuguesa não deixou, mesmo depois de separada, de comunicar com o seu ex-marido. Que teve fidalgos leoneses a ajudá-la contra seu irmão. Era natural, portanto, que ela tivesse procurado em Leão, e mais particularmente em Gradefes, uma mulher competente para ser a primeira abadessa de Lorvão. O nome Vierna, ou Ivierna, é indubitavelmente espanhol, e a abadessa que encontramos em Lorvão com esse nome veio quase com certeza de Espanha, e de Leão.
            Para coadjuvar a abadessa foi nomeado um monge. Aquele que é provavelmente o primeiro contrato firmado por dona Vierna, encontra-se menção de um ‘irmão Garcia’, o qual, como vicário, garantia o contrato. De ali em diante, haverá sempre um religioso encarregado de certos aspectos da administração do mosteiro. Em l213, esse administrador era designado por ‘vicarius’, em l218 encontrámo-lo com a designação de ‘comendador’, e, gradualmente, estabelecer-se-ia a designação de ‘procurador’ para o servidor masculino que se ocupava mais particularmente da administração externa do mosteiro.
            Temos pois o mosteiro de Lorvão vivendo sob o governo de uma primeira abadessa, e esta sendo coadjuvada na administração por um vigário. D.Teresa podia estar sossegada quanto ao mosteiro. No entanto, apesar das suas ocupações bélicas - ela e as irmãs em acesa luta com o rei seu irmão - D. Teresa não descurou as suas obrigações como padroeira de Lorvão. O indispensável contacto do mosteiro com a cúria romana foi estabelecido cedo, e certamente por D.Teresa. Há uma bula expedida de Roma no ano de 1213, na qual, em evidente resposta a um pedido, se ameaçava com excomunhão todos aqueles que atacassem ou violassem os privilégios da ordem de Cister, e, naquele caso particular, do mosteiro de Lorvão sob a referida Ordem.
            A protecção do Papa era muito necessária naquela ocasião. É que Cister estava a braços com uma verdadeira avalanche de vocações e fundações femininas, e a Ordem, muito longe de se congratular com tanta profusão, tentava eximir-se à obrigação de zelar por novos mosteiros de mulheres. No capítulo geral dos cistercienses de 1212, já se tinham ouvido queixas contra certos mosteiros femininos, que, no intuito de terem maiores facilidades pastorais, se tinham instalado demasiado perto de mosteiros de homens. Também houvera severos reparos quanto à liberdade de movimentos que as novas religiosas se arrogavam, afirmando-se no Capítulo, que a clausura não era devidamente guardada e respeitada pelas monjas. Em virtude de estas e de outras queixas, a Ordem iria ao ponto de decidir, em 1228, que no futuro não aceitaria a incorporação de novos mosteiros de mulheres. Só a influência do Papa conseguiria por vezes superar essa decisão.
D. Teresa mostrara estar bem consciente da tendência anti feminina que imperava em Cister quando procurou de imediato a protecção de Roma para o seu mosteiro. A ligação de Lorvão com a Santa Sé seria duradoira. Mesmo mais tarde, e apesar do mosteiro se encontrar directamente filiado a Claraval, a casa mãe da Ordem de Cister, seria sobretudo em Roma que as abadessas de Lorvão procuravam conselho e solução para os seus problemas.
      Mas isso é olhar para o futuro. De 1211 a 1223 os contactos do mosteiro com o exterior devem ter sido reduzidíssimos. Lorvão foi nesses anos um mosteiro onde pairava a dúvida, com o seu futuro dependendo da sorte da guerra que se travava entre a sua padroeira e o rei. Era forçosamente então um mosteiro unicamente dedicado à devoção, e, quem sabe se não foi naqueles anos que as monjas de Lorvão viveram os momentos mais recolhidos da sua existência, conjugando-se a natural devoção dos primeiros anos de fundação com o forçado isolamento em que o mosteiro se encontrava.
            As visitas de seculares, tão prejudiciais ao recato da vida monástica, seriam forçosamente pouco frequentes. O mosteiro estava em local muito isolado, e a incerteza dos caminhos em tempo de guerra não convidava a deslocações. Constata-se que os emprazamentos de terras e as compras e vendas que traziam muita gente ao mosteiro, transacções que tinham sido tão frequentes em Lorvão no tempo dos monges e o seriam de novo depois de 1223, que essas transacções praticamente não existiram enquanto durou a guerra entre D. Afonso II e as irmãs, a ameaça dum ataque devendo ter pairado constantemente sobre aquele mosteiro isolado. Não seria decerto isso que impedira a padroeira de residir lá. Ela encontrava-se sempre nos locais de maior perigo, mas as suas terras e castelos, mais directamente ameaçados, exigiam prioritariamente a sua presença. Nesses anos de luta entre irmãos, D. Teresa e D.Sancha devem portanto ter visitado muito pouco o mosteiro. As monjas de Lorvão não podiam ser a primeira das suas preocupações. Aliás de D. Sancha nunca o seriam. O seu empenhamento religioso foi totalmente diferente do de sua irmã mais velha. Enquanto essa foi comprovadamente sempre, e só, uma adepta fervorosa da ordem de Cisterenquanto D. Sancha protegeria dois outros movimentos religiosos: os mais avançados do seu tempo. Foi ela quem acolheu na sua vila de Alenquer os primeiros frades franciscanos vindos de Assis para Portugal, e foi ela quem se interessou activamente pelas mulheres que pretendiam viver santamente e em pobreza, mas sem se submeterem a uma determinada ordem religiosa. Ora 'religião' e 'ordo' tinham na época sentido praticamente idêntico, e fora sempre um princípio basilar da Curia Romana, que aquilo a que se chamava vida religiosas, a entrega total de alguém a essa vida, ‘se processasse obedecendo a determinadas regras e a uma ordenação fixa para poder existir no seio da Igreja’. Um movimento de mulheres que não queriam Ordem e Regra, cheirava perigosamente a herético. Poderia até ter sido declarado como tal, se não fosse o movimento ir ao encontro de aspirações latentes na sociedade, e de ter encontrado um eloquente defensor na pessoa do francês Jacques de Vitry. Em 1216, Vitry obteria autorização papal para que certas mulheres pudessem livremente viver em comum, ‘exortando-se umas às outras e fortificando-se por meio de recomendações mútuas’. O movimento das mulheres independentes em religião, das 'beguinas', instalou-se, e espalhou-se rapidamente por toda a Europa.
Em Portugal, o movimento das enceladas ou inclusas, como se designavam popularmente aquelas mulheres vivendo agrupadas em pequenas celas - no fundo em pequenas casas próprias - surgiu primeiro em Alenquer. Era uma vila que ficara praticamente despovoada depois da reconquista cristã, e onde D. Sancho I fixara gente vinda de Renânia e de Flandres, e se um movimento como o das mulheres santas, ou 'beguinas' , tinha que nascer em Portugal, era em Alenquer, com a sua população de origem germânica, o sítio onde se podia esperar que isso sucedesse. É difícil fixar exactamente a data em que se formou o primeiro grupo de enceladas. Possivelmente já existiam em embrião quando D. Sancha herdou a vila de Alenquer, e firmar-se-iam subsequentemente com o seu apoio. Ou talvez só lá se tivessem firmado verdadeiramente após 1216, quando o aval do Papa permitiu a sua existência legal dentro da igreja.
            Encontra-se contudo documentada uma primeira doação às celas de Alenquer em Novembro de 1211. Nessa data, a infanta D. Sancha dá parte do seu reguengo de Alenquer, e ainda duas outras terras suas à igreja de Santa Maria das Celas de Alenquer, portanto à igreja que iria servir as enceladas. Essa doação é acrescentada em Dezembro desse ano com outra: uma azenha com todos os seus pertences junto da ponte nova da vila. Ambas as doações foram feitas com a aprovação da rainha D. Teresa, e ambos os instrumentos de doação foram selados com os selos das duas irmãs. As duas transacções, e, particularmente, a primeira, foram testemunhadas por numerosas testemunhas, sinal de que se tratava duma doação à qual a doadora pretendia dar grande relevo. Entre os leigos que assistiram ao acto encontram-se pelo menos dois homens cujos nomes apontam para a sua ascendência franca. São eles ‘Johanes Rolan e Duran de Mozela’ ou seja ‘Johannes Roland e Duran von der Mosel.
            De Alenquer, D. Sancha levou a ideia dum agrupamento de celas para Coimbra. Em Julho de 1222, estando então com sua irmã em Montemor-o-Velho, a Infanta doou duas azenhas no local que se chamava Guimarães – Vimaranes – ‘às celas de Santa Maria que estão junto de Coimbra’, para a obra das ditas celas e em honra de Santa Maria.
            A partir daquela data sucedem-se a um ritmo acelerado as doações para sustentar as inclusas das celas, e isto não só por parte da infanta, como por parte de senhores da vizinhança, desejosos de lhe agradar. Davam-se vinhas, olivais, terras de semeadura, para as ‘celas domne regine Sancha’. Foi a sua primeira designação, o nome evoluiu, acabando por se fixar em ‘Celas de Santa Maria de Guimarães junto a Coimbra’.Tal como o fizera em Alenquer, D. Sancha mandou edificar uma igreja junto das celas, e já em Janeiro de 1223 existia autorização do bispo de Coimbra para que na igreja se rezassem os ofícios divinos. Em Agosto desse ano, a igreja era dotada com a terça parte da vila de Aveiro, uma aquisição recente de D. Sancha.
      Com igreja e terras próprias, as celas de Coimbra estavam pois, em princípios de 1223, legalmente estabelecidas e já razoavelmente dotadas, e a sua situação material ainda melhoraria consideravelmente depois da morte de D. Afonso II, quando D. Sancha pode dispor de todos os seus bens.
      O rei morreu em Março de 1223, e foi com o seu filho mais velho e sucessor, um rapaz com cerca de quinze anos, com quem as irmãs do falecido rei D.Afonso iriam resolver o litígio nascido com o testamento de D. Sancho I. Era palpável que as coisas tinham mudado com a morte de D. Afonso II. Era visível até na escolha do local onde se realizariam as conversações. Montemor-o-Velho, onde tias e sobrinho se encontrariam, era símbolo da defesa dos direitos das infantas, e mostraria a quem o quisesse ver, que o novo rei não ia tratar com vencidas.
      O número e a qualidade das testemunhas que subscreveram o tratado, que veio a sair daquela reunião, são elucidativos. O rei apresentou-se com toda a sua corte. O ‘maior domus curiae’, o primeiro senhor da Corte, era então D. Pedro Anes. Ele lá estava. Presente também D. João Mendo, "signifer", alferes mor do rei. Presentes também o Arcebispo de Braga com o tesoureiro mor da sua Sé e seu capelão. Presentes altos dignatários das igrejas do Porto, de Lisboa e de Coimbra.
            É sabido que grande parte do clero tomara parte pelas infantas contra D. Afonso II, pelo que alguns dos prelados que testemunharam aquelas pazes deviam ali estar por essas princesas. Outros porém estavam presentes porque faziam parte da administração do reino.
Toda esta gente teve de se instalar em Montemor, distribuindo-se fidalgos, cavaleiros, prelados, escrivães e sua criadagem pelas casas existentes, enquanto se armavam tendas nos arrabaldes da vila para aqueles que não encontravam lugar debaixo de telhado. Era o arraial que se armava sempre que a corte pousava e, na opinião de alguns contemporâneos, a vida nestes paços ambulantes era um verdadeiro inferno.
À falta de adequada descrição dessas situações por cronista português coevo, temos as informações que nos são dadas por um francês, o diácono Pedro de Blois, em uma das suas cartas, sobre a vida numa corte em andanças em fins do século XIII. O diácono fala do cansaço daquelas deslocações da corte, dos incómodos que lhe eram inerentes, com a comida preparada à pressa com produtos muitas vezes deteriorados pelo calor e pelas dificuldades do transporte, com o vinho estragado, o pão mal cozido, os criados do rei ávidos de gratificações, ‘aduladores sabujos, estorcionadores sem escrúpulos, infernais nas suas exigências, ingratos para com aqueles de quem recebiam, maltratando os que se negavam a dar e dar cada vez mais’. Pior que tudo isso, segundo o narrador, era a incerteza quanto à duração das estadias da corte em cada local. Sucedia, por exemplo, que o rei decidisse ficar durante algum tempo em certo local. Os arautas proclamavam a intenção do monarca, a notícia espalhava-se, o séquito do rei instalava-se. "Pois podeis ter a certeza, escreve Pedro de Blois, que o rei partirá afinal na madrugada seguinte, desfazendo todas as expectativas". Todos tinham de se precipitar, até os que tinham decidido fazer uma sangria ou tomar uma purga se punham a caminho. Partindo no meio do tratamento, arriscando a saúde. ‘Vereis os homens correrem como doidos de um lado para o outro, as mulas empurrando as outras mulas, os carros esbarrando com outros carros, um verdadeiro pandemónio’. Podia também suceder o contrário, podia suceder que o rei declarasse a sua intenção de não se demorar, de partir no dia seguinte de madrugada. ‘Pois podeis ter a certeza, escreve o mesmo narrador, que o rei mudará de propósito e ficará na cama até ao meio dia’. E lá se ficavam as mulas com as suas cargas esperando pacientemente, os carros parados, os carreiros dormitando, os mercadores que seguiam a corte em ansiosa expectativa"1
            A corte dos reis portugueses em andanças não devia diferir grandemente da dos seus congéneres franceses, e quando D. Sancho II e suas tias se encontraram em Montemor para tratar das pazes reinava lá provavelmente igual ou maior confusão do que aquela que foi descrita por Pedro de Blois. As infantas, essas, há anos que tinham a sua residência praticamente estabelecida em Montemor. Possivelmente também se tinha fixado lá comitiva daquelas senhoras. E toda essa gente lá devia ter alojamentos mais ou menos fixos. Haveria os clérigos, conhecedores de latim, para lhes rezar as missas e escrever as cartas. Já tinham porém começado a surgir letrados leigos, e um ou outro lá estaria. Presentes com certeza também cavaleiros das ordens religiosas e militares, Templários e Sapatários, a quem tantas vezes encontramos testemunhando as escrituras e os contratos feitos pelas duas senhoras. Quem comprovadamente esteve presente em Montemor nessa ocasião foi a abadessa de Lorvão. O tratado de paz firmado entre as Infantas e seu sobrinho contemplaria Lorvão de forma notável. O mosteiro viu o seu património aumentado e valorizado com uma aquisição de vulto: a vila da Esgueira. Devido aos jejuns e abstinências que obrigavam a uma alimentação onde o peixe primava, era importantíssimo para todo e qualquer mosteiro, sobretudo para um mosteiro grande, ter a garantia de um fornecimento regular de peixe. Ora Esgueira era um porto piscatório, situava-se a distância relativamente curta de Lorvão. Esgueira fora doada por D. Sancho I a sua filha D. Teresa, e, em Montemor, ficou acordado que a vila pertenceria em suas vidas a D. Teresa e sua irmã D. Branca, que esta usufruiria dos rendimentos da vila se sobrevivesse a sua irmã, e que, depois da morte de ambas, a vila passaria definitivamente para a posse do mosteiro de Santa Maria de Lorvão.Este acordo seria ligeiramente alterado na reunião de Montemor. D. Branca acordou com a abadessa de Lorvão que, no caso de ela, D. Branca, sobreviver a sua irmã e ficar com o usufruto da vila, que cederia esse direito a Lorvão contra o pagamento de 300 morabitinos por parte do mosteiro. Caso na ocasião o mosteiro não estivesse em condições de fazer esse pagamento, a Infanta retomaria a administração da vila até à sua morte. As duas contraentes puseram o seu selo no instrumento de contrato. ‘Sigillo meo et sigillo abbatisse de lorbano istam cartam facimus commuviri’.2
D. Branca e suas irmãs foram das primeiras senhoras portuguesas a usar selo próprio, e a abadessa Vierna foi certamente a primeira abadessa de mosteiro português de religiosas a tê-lo. Lorvão saiu, como se viu, engrandecido daquela reunião, e a posição que o mosteiro ali adquiriu perduraria, com altas e baixas, por seiscentos anos. A partir das pazes concluídas em Montemor, D. Teresa poderia ter-se instalado em Lorvão, mas tudo indica que não o fez. Deve ter considerado o mosteiro seguro e bem entregue, e não necessitando da sua supervisão. A partir de 1223, e enquanto a abadessa Dona Vierna viveu, não há qualquer documento de Lorvão assinado por D.Teresa, há sim numerosos documentos seus datados de Celas, o mosteiro que sua irmã D.Sancha fundara junto de Coimbra.
            Celas, Lorvão. É impossível separar a história dos dois mosteiros nas primeiras décadas do século XIII. Tão impossível como separar a história das duas irmãs que se empenharam pela fundação e vida das duas instituições. Foi ligação duradoira, que não morreria com as infantas. Lorvão iria frequentemente buscar religiosas de Celas para cargos no seu mosteiro, e sucederia por mais de uma vez, que a abadessa de Lorvão fosse parente próxima da de Celas. Não consta que alguma vez tenha existido entre os dois mosteiros a rivalidade e o quase antagonismo, que, em determinadas ocasiões houve entre Lorvão e Arouca, o outro grande mosteiro cisterciense.
            Quanto às razões que levariam D.Teresa a viver em Celas, de preferência a Lorvão, só é possível conjecturar. Celas era incomparavelmente mais salubre e risonho que o terrível Lorvão, e havia razões de ordem prática. Coimbra era então a cidade portuguesa, que mais se aproximava de uma capital administrativa do reino. Celas estava perto de Coimbra, e para poderem zelar pelas suas obras, interessava às irmãs estarem perto da corte e do rei. Fosse por essas ou por outras razões, facto é, que foi, comprovadamente, em Celas, junto de sua irmã D.Sancha, onde D.Teresa de preferência viveu, mudando-se para Lorvão só quando a sua presença ali era necessária. O que sucedeu uma primeira vez por volta de 1228, após a morte da abadessa dona Vierna. Os documentos provam que a Rainha tomou então conta do governo do mosteiro, e residiu lá por um período de cerca dez anos. Tudo indica, que essa estadia durou enquanto não se encontrava abadessa competente para suceder a dona Vierna.
             Em alguns dos documentos dessa época, D.Teresa aparece agindo só, em outras vemo-la actuando juntamente com a comunidade das religiosas. Assim, em Janeiro de l230, faz-se uma composição com o bispo de Viseu sobre o direito de visitação às igrejas pertencentes aos coutos que Lorvão possuía nessa diocese; a composição é feita, por parte do mosteiro, pelo ‘convento’ - ou seja a comunidade das religiosas -, com o consenso e sob a autoridade de D.Teresa: ‘interveniente auctoridade et consensum Regine domne Tharasie eiusdem monasterio domne et patrone’.3 No ano seguinte o mosteiro, continuando muito provavelmente sem abadessa, - dá-se a aquisição por parte de Lorvão comprava a um tal Petro Petri uma sua propriedade em Serpins. A venda è feita à rainha, ao convento de Lorvão e ao seu procurador, Frei Domingos. Em Julho desse ano há comprovadamente nova abadessa em Lorvão. É dona Sancha Gonçalves, filha de Dom Gonçalo Mendo, da linhagem dos Sousa e um fiel amigo de D.Teresa desde a infância. Talvez que dona Sancha fosse muito nova para agir só, ou talvez que a Rainha por outra qualquer razão não lhe reconhecesse autoridade suficiente, o facto é que ela não irá largar mão da administração do mosteiro. A abadessa Dona Sancha praticamente não actuaria sem o beneplacit de D.Teresa. Em todos os contratos firmados durante este abadessado, lê-se que estes eram feitos com o consenso e sob a autoridade da Rainha. No primeiro documento desta abadessa, datado de Julho de 1231, chegando Lorvão a um acordo com o bispo de Coimbra sobre a apresentação dos clérigos nas igrejas de Botão, Cacia, São Martinho da Árvore, Vilela, Figueira e Serpins, D.Teresa figura no acordo como ‘patrona, procuratore et defensore’ de Lorvão. De aí em diante, enquanto dona Sancha Gonçalves, é abadessa étodos os contratos são feitos dessa forma, pela rainha e não pela abadessa. Quando a rainha se ausenta, o que sucedeu durante esse abadessado - ela esteve em Valença de Julho de 1231 a 1 Março de 1232 em conferência com a rainha D. Berengária de Leão e, quem sabe, se não tratando de encontrar uma nova abadessa para Lorvão - os contratos são feitos em seu nome e com a sua autorização ‘de mandato Regina Domna Tharasia facimus carta’ etc.4
            Isto durará até que, em 1237, há uma nova abadessa em Lorvão. Chama-se dona Maria Afonso. Se no caso de D.Vierna, a primeira abadessa, concluímos por indução que ela viera de Gradefes, no caso de dona Maria Afonso sabemos por documento que Maria Afonso veio do dito mosteiro leonês. Ao qual D.Teresa muit provavelmente recorreu por não ter em Portugal quem lhe merecesse confiança para ocupar lugar de tanta responsabilidade. A esta abadessa, a Rainha entrega em absoluto o governo do mosteiro, os documentos respeitantes ao governo são da nova abadessa. E há prova documentada de que D. Teresa passou a viver de novo em Celas, tendo ali casa própria. Nos documentos assinados pela Rainha encontraremos homens que declaram estar ao serviço da rainha ou serem da sua casa: ‘Dominicus Pelagi de domo regina’, Pedro Pequeno ‘ostiario´’, porteiro da rainha, Domingos, homem da casa da rainha, e outros.O último documento emitido por D. Teresa é datado de Março de 1250. Foi feito em Celas, pouco antes da sua morte, e trata dum contrato entre ela e a abadessa de Lorvão para que esta dê casa e comida durante o resto da sua vida a uma protegida de Domingos, homem da casa da Rainha. À sua morte, D.Teresa deixava o mosteiro de que fora padroeira bem preparado para poder subsistir pelos séculos fora. Lorvão era não só o primeiro entre os mosteiros de mulheres, como, em ordem de grandeza, depois de Alcobaça, o segundo entre os mosteiros do reino.
            Os bens materiais do mosteiro existiam em grande parte quando D.Teresa tomou conta de Lorvão, mas foram as medidas de protecção por ela obtidas por meio de sucessivas bulas apostólicas, que garantiram a Santa Maria Lorvão a posição privilegiada de independência de que usufruiria até ao século XVI.
Apesar das afirmações dos cronistas monásticos, nada prova que a rainha D. Teresa tenha professado. Foi sem dúvida ‘religiosa’, no sentido de entusiástica adepta à Ordem de Cister, mas monja da Ordem, não foi.







1 Coulton, G. C. Life in the Middle Ages. Livro III, pgª 2
2 T.T. Col. Esp. Lorvão -10-24
3 T.T. Col. Esp. Lorvão -10-21
4 T.T. Col. Esp. Lorvão -10-14
5 T.T. Col. Esp. Lorvão -10-18

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