VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº VI AS ABADESSAS

>> quarta-feira, 27 de janeiro de 2016


As abadessas dos grandes mosteiros eram personagens importantes na sociedade medieval, ‘mulheres de considerável posição social, habituadas ao poder e gostando de o exercer’, assim define W.M. Labarge as superioras dos mosteiros no seu livro sobre as mulheres na Idade Média. ‘Pessoa importante não só no seu próprio convento, como no mundo exterior. Era vizinha, senhoria, e filantropa nas vizinhanças da sua casa’, escreve a mesma autora. A autoridade da abadessa exercia-se com efeito, não só sobre as suas religiosas, como sobre a gente que vivia em torno e nos arredores do mosteiro. Mais longe até, em toda a parte onde a casa monástica possuía terras e bens. Quanto maior e mais rico fosse o mosteiro, maiores eram a posição e a influência da sua superiora. No caso das abadessas de Lorvão, que eram senhoras donatárias de várias vilas, e com jurisdição própria em algumas delas, que apresentavam os párocos em numerosas igrejas, que eram donas de inúmeras terras das quais podiam dispor, arrendando-as ou aforando-as, e de quem dependia uma infinidade de gente ligada à administração dos bens monásticos, pois dessas senhoras facilmente se entende que, na região conimbricense, só o bispo de Coimbra e, talvez, o Prior de Santa Cruz, tivessem maior posição e influência que dona abadessa de Lorvão.

Naturalmente, também se esperava de uma abadessa, que ela, como cabeça do seu mosteiro ou, em determinados casos, pela influência da sua família, obtivesse benesses para o seu mosteiro, que protegesse à sua gente, e que estendesse, se necessário, a sua protecção a outros, impondo-se aos bispos e outros grandes senhores e, se necessário, ao próprio soberano. As abadessas de Lorvão fizeram-no frequentemente. Em 1288, ao arrendar uma propriedade do seu mosteiro aos frades de Santa Cruz, a abadessa dona Maria Joanis promete, no contrato que firma com os frades crúzios, que, no caso de o rei vir de qualquer forma a incomodar os frades, ela, abadessa, e seu convento, os protegeriam com as suas cartas e privilégios e à sua custa, ‘per nostras literas, cartas, privilegius et expensas debemus vobis defendere...’.1

Dois séculos mais tarde, a influência da abadessa de Lorvão ainda era tão reconhecida que, em 1416, um tal Afonso Peres não hesitava em dar à abadessa dona Mécia Vasques da Cunha, para ela e seu convento, uma ‘marinha de fazer sal’, com a condição de ela e as suas sucessoras tirarem, ou fazerem tirar, o dito Afonso Peres da vintena do mar ‘em que se é posto por galiote, e não o podendo tirar da dita vintena, e havendo aqui armadas algumas assim de el-rei como doutras quaisquer, a que o dito Afonso Peres seja chamado, que a dita Senhora e as suas sucessoras sejam teúdas a o tirar e livrar das ditas armadas.’ 2

A influência da abadessa seria naturalmente tanto maior quanto ela, para além do seu cargo, fosse influente devido às suas ligações familiares, que fosse pessoalmente conhecida das pessoas altamente colocadas.

E assim, ao tentar estabelecer a lista das primeiras abadessas de Lorvão, parti do princípio, que havia que as procurar entre a primeira nobreza do seu tempo. E mais, tinha a convicção, que elas seriam de preferência membros daquelas famílias que gozassem então de maior prestígio e tivessem mais influência na sociedade coeva. Conjugando e comparando os dados dos Livros de Linhagem e as informações dos documentos, foi possível estabelecer, com razoável certeza, a filiação das primeiras abadessas, e provar que todas elas tinham de facto pertencido à primeira nobreza do reino. E que, sem excepção, eram filhas de homens de grande nascimento, com influência pessoal na Corte, e que, na sua maioria, eram homens de posses.

Dona Sancha, a que reputo por segunda abadessa de Lorvão, tendo sucedido à abadessa Vierna, era uma Sousa, filha de D. Gonçalo Mendes de Sousa, que, na primeira metade do século XIII, era chefe da linhagem dos Sousas, e foi em Portugal um dos homens mais poderosos do seu tempo.

Dona Maria Afonso, a terceira abadessa, que, tal como a primeira, viria do mosteiro de Gradefes em Leon, era de extracção real, neta de D. Sancho I, pela sua mãe D. Teresa Sanches. A sua sucessora, dona Marina Gomes, era uma Briteiros. Eleita já depois da morte da rainha D. Teresa, seria a primeira abadessa a sê-lo sem a intervenção da padroeira do mosteiro. Era filha de Gomes Mendes de Briteiros, e pertencia a uma família que se encontrava em franca ascensão social, apoiada nos Sousas, a quem estava ligada por laços de amizade e de parentesco. Dona Marina Gomes foi sucedida por uma prima sua, dona Urraca Rodrigues, filha de Ruy Gomes de Briteiros. Às duas Briteiros, sucede de novo uma Sousa, a muito rica dona Maria Anes, filha de D. João Garcia de Sousa, senhor de Alegrete por sua mulher. Em fins do século XIII, depois de sessenta anos de governo de Sousas e Briteiros, as religiosas de Lorvão elegem finalmente uma abadessa que não pertencia a nenhuma dessas famílias. Trata-se de dona Constança Soares, filha de D. Sueiro Anes de Paiva. Eleita em 1290, o seu abadessado duraria até 1317. Segue-se-lhe no governo de Lorvão uma filha dos Porto- Carrero. Governou até cerca de 1332, sucedendo-lhe de novo uma Briteiros, Dona Teresa Mendes, filha de D. João Rodrigues de Briteiros e de D. Maria Annes. Esta abadessa introduziria em Lorvão o ‘selo do convento’, que representava a totalidade das religiosas. Dali em diante os documentos notariais seriam- como veremos - legitimados com o selo da abadessa e com o selo do convento. A abadessa seguinte dona Guiomar Fernandes de Panha, foi a primeira das abadessas de Lorvão a usar apelido e patronímico. Rica, administrando ela própria os seus bens, é talvez a esse facto que ela deveu a sua eleição. Não pela ascendência familiar, que era relativamente modesta para a bitola de Lorvão. Dona Guiomar morreu, lê-se ‘no ano da ‘peste grande’, em 1348 ou pouco depois, aparentemente vítima dessa epidemia. Menciona-se que o mosteiro foi então temporariamente regido por uma regedora, e, em seguida, por uma dona Grácia, que provavelmente também foi regedora, seguindo uma abadessa, que deve ter sido igualmente vítima da peste. Fora de novo uma Sousa. Em l395 entramos no período dos abadessados de Cunhas e Eças. A partir desse ano e até 1468, sucedem-se primeiro, quatro abadessas da família Cunha, todas próximas parentes umas das outras. A primeira é dona Mécia Vasques da Cunha, filha de Vasco Martins da Cunha. O reinado das Eças, que seguiu ao das Cunhas, contou unicamente com duas abadessas, mas entre a primeira, dona Catarina d’Eça, e a sua sucessora, dona Margarida d’Eça, Lorvão esteve em mãos de Eças de 1468 a 1537.

A eleição da abadessa era um ponto alto na vida do mosteiro. Assunto do maior interesse para todo o convento, as monjas não seriam humanas se não começassem a pensar na sucessão da sua prelada ao primeiro sintoma de enfraquecimento ou de doença. A abadessa não teria ainda exalado o último suspiro, e já havia decerto uma ou mais candidatas ao grande cargo, e a campanha eleitoral estaria em pleno curo. As religiosas que tinham condições de ser eleitas, tinham suas adeptas - seus partidos -, e não lhes faltava o interesse de parentes e familiares. Ter uma sua parente à testa do poderoso mosteiro de Lorvão não era pouca coisa.

A organização e preparação do acto eleitoral após a morte de uma Abadessa, competia à Prioresa, a religiosa que ocupava o segundo lugar na hierarquia do convento. Ela substituía de imediato a defunta prelada, e o primeiro acto da sua administração era a notificação da morte de Dona Abadessa ao bispo da diocese e ao abade do mosteiro do qual o seu dependia. No caso de Lorvão eram notificados o bispo de Coimbra e o abade de Claraval. A partir do século XV, passou a ser notificado também o abade de Alcobaça. Ao Bispo avisava-se unicamente por cortesia. Era do abade de Claraval e, posteriormente, do de Alcobaça, que viria a autorização para se proceder à eleição da nova abadessa.

A eleição realizava-se na Sala do Capítulo, estando presentes todas as monjas. Iam escolher aquela entre elas que, de ali em diante, e até à sua morte, as ia governar. Todas elas, da mais nova à mais velha, tinham direito a voto. Depois de um cântico implorando a inspiração do Espírito Sant procedia-se à votação. Era voto secreto, um voto por pessoa. Admitia-se a eleição ‘por inspiração’ ou ‘por aclamação’, quando alguém propunha um nome, e este era aceite por unanimidade e aclamado por todas. Uma cartorária do mosteiro que, no seculo XVIII, escreveu o ‘Livro das Preladas’, não recorda caso desses em Lorvão.
Uma vez a eleição concluída, e a abadessa eleita, eram de novo avisadas as mesmas autoridades eclesiásticas. Sem a sua aprovação, a eleição não era canonicamente válida. Tudo isto levava tempo, e sucedia, se bem que não fosse muito vulgar, que o bene-placit não fosse concedido, tendo de se proceder a nova eleição. Sucedia também, e isso, sim, era frequente, haver discórdias entre as monjas quanto à eleição, com violentas disputas e com as diferentes facções querendo impor a sua candidata. Não há testemunho de disputas nas eleições em Lorvão nos primeiros anos. Ou porque na realidade não as tivesse havido, ou, o que é mais provável, por ninguém se ter dado ao trabalho de as anotar. Uma disputa sucedida no século XVII ficou registada. A autora do ‘Livro das Preladas’ escreve a esse respeito, que, querendo fazer eleição, houvera tais bulhas, que o mosteiro estivera nove meses sem abadessa, e que no fim deste tempo ‘para aquietar as oretialidades (sic) viera em Maio dona Francisca de Vilhena, freira de Celas’.

As cistercienses fixavam prudentemente, a idade das candidatas a abadessa, em trinta anos, e cinco de profissão. A duração da sua prelazia era para a vida, eram abadessas ‘perpétuas’. Uns sistemas que seria alterado com as reformas do século XVI, as abadessas passarão a ser trienais, ou seja, eleitas por três anos.

Idealmente a escolha deveria obedecer aos sábios preceitos da Regra de São Bento, e as eleitoras, inspiradas pelo Espírito Santo, considerariam sobretudo a competência e as virtudes da candidata. Tudo indica que a realidade era outra, que a eleição obedecia mais do que seria de desejar a considerações de ordem material e a influências externas. ‘Grandes senhores usavam da sua influência e do seu dinheiro para conseguirem o ambicionado posto para alguém da sua família, e a própria candidata não era avessa a untar as mãos das influentes, ou a pedir apoio no exterior’, escreve Eileen Power no seu livro sobre os mosteiros de mulheres em Inglaterra. Os autores coevos insurgiam-se particularmente contra as influências exteriores, contra as abadessas de ‘sangue’, impingidas pelos seus familiares, e contra as abadessas ‘simoniacas’, que tinham conseguido a eleição com dinheiro ou à custa de benesses prometidos. Excepcionalmente houve casos de abadessas de gestão, designadas para gerir o mosteiro em época de guerra ou devido a problemas de administração, ou por imposição exterior. Em Portugal verificar-se-ia isso sobretudo no século XVI, quando da luta travada entre D.João III e as ordens monásticas, pretendendo o. Rei ser ele a nomear as abadessas dos grandes mosteiros. Adiante se dirá da luta épica que nasceu dessa pretensão com particular acutilância justamente com Lorvão. Nos séculos anteriores não há memória de intervenção real tão violenta, se bem que tanto os reis como os bispos tentassem periodicamente impor as suas vontades às monjas, e influir directamente nas eleições das suas preladas. O que em geral não conseguiam, porque as religiosas protegiam com afinco o direito de elegerem elas a sua abadessa, e não hesitavam em se queixar ao Papa, quando esse, ou qualquer outro dos seus privilégios, estivesse ameaçado.
O Selo abacial

 Logo que canonicamente confirmada, a nova abadessa tomava conta do seu cargo. Recebia o báculo, o castão do pastor, que marcava a sua autoridade, e era-lhe entregue o selo abacial.
 

No seu hábito, a abadessa não se distinguia das outras religiosas. Aliás o hábito pouco se distinguia do traje mulher da classe média vivendo no mundo. Um notário que, em fins do século XIII, descrevia o selo da abadessa de Lorvão, diz, que se via no selo ‘uma figura de mulher com uma baga na mão destra’ 3 

 
Em outro documento lê-se que no selo se via uma ‘mulher ou uma abadessa’. O hábito da religiosa era nas suas peças quase igual ao da mulher que vivia no mundo: Vestia camisa e cogula, e cobria-se com um véu. Para os frios usava manto. A simplicidade no hábito manteve-se na maioria dos mosteiros, mas em alguns as religiosas conseguiram furar o tabu. Exemplo é Arouca, onde as monjas, decidiram no século XVIII, dar uma nota de elegância mundana ao seu hábito.



A abadessa era senhora absoluta no seu mosteiro, mas isso não impedia que, em todas as decisões graves, ela tivesse de se submeter à prévia consulta e ao voto e da sua comunidade, do seu ‘convento’. Em questões menores podia aconselhar-se unicamente com as mais velhas, as anciãs, e as oficiais. Em caso de vulto a abadessa tinha – como se disse - de ouvir ao convento na totalidade, e os contratos tinham de ser feitos com o consentimento de toda a comunidade. O documento frisava sempre que assim sucedia, que o convento dava o seu consentimento. Não punha o seu selo, acrescentava-se, porque na Ordem de Cister o convento não tinha selo, “conventus ad Lorbani sigillum non apponitur quod non est de ordinem Cisterciensem quo sigillum habet”.5 A criação de um selo conventual em Lorvão no tempo da abadessa dona Teresa Mendes iria permitir dali em diante um controle mais apertado das medidas arbitrárias da abadessa, nenhum contrato sendo válido sem os dois selos, o abacial e o conventual.

Os selos  abacial e o conventual
O novo selo era uma ajuda contra as arbitrariedades da abadessa - de todas as tentações do seu cargo, a de governar autocraticamente seria talvez a maior - mas não as evitaria por completo. O nepotismo reinava em todos os mosteiros femininos. Abadessa que se conservasse por alguns anos à cabeça do mosteiro preparava automaticamente a sua sucessão entre as monjas da sua família. Praticado em Lorvão pela maioria das abadessas e desde os primeiros tempos, a coisa tomaria proporções escandalosas nos abadessados das Eças, quando praticamente todos os principais cargos de Lorvão estiveram em mãos de parentes chegadas da abadessa. Em 1512, no abadessado de dona. Catarina d’Eça, assinam uma escritura a prioresa dona Joana d’Eça, a celeireira dona Guiomar d’Eça, a sacristã dona Joana da Guerra - as Guerras eram primas das Eças - e ainda dona Isabel d’Eça, enfermeira: No abadessado seguinte, o de dona Margarida d’Eça, constata-se que, em 1521, a sua prioresa era dona Joana d’Eça, a sub-prioresa dona Guiomar d’Eça e a sacristã continuava a ser dona Joana da Guerra

E não era unicamente no interior do mosteiro, que se observa o favoritismo em relação à família. A abadessa dona Marina Gomes combina em 1264 com seu sobrinho D. João Rodrigues de Briteiros, que este receba de Lorvão uns casais que eram de sua irmã dona Teresa Rodrigues, monja em Lorvão, dando ele ao mosteiro uns casais na Estremadura, que eram de outra sua irmã, monja em Arouca. Esse quinhão, declara o contraente, fora-lhe concedido pela abadessa desse mosteiro.6  A mesma abadessa fez outras transacções do mesmo tipo com outros membros da sua família.

Caso parecido deu-se em 1400, numa troca de terras efectuada por dona Mécia Vasques da Cunha. Nesse ano, a 21 de Dezembro, reuniram-se no mosteiro de Lorvão, às portas da sala do cabido ‘a honrada e religiosa dona Mecia Vasques da Cunha’ e o convento do seu mosteiro. As religiosas tinham sido convocadas - como era costume - pelo toque da campainha ‘por campa tangida’, e, ‘todas juntas chamadas especialmente para isto’, que era, o de ouvir a proposta da abadessa no sentido de se cederem certos bens do mosteiro a seu pai, Vasco Martins da Cunha e ao Prior de Grijó, recebendo o mosteiro outros bens em troca. O que seria, garantia a abadessa, a favor, ‘por prol’, do dito seu mosteiro. As monjas disseram que sim, que ‘lhes prazia de tomarem os ditos casais, que lhes assim dona abadessa dava pelos outros que lhes tomou’, e todas juntamente ‘louvaram e outorgaram o dito escambo’.7 Parece pouco provável que Vasco Martins da Cunha e o Prior de Grijó se dessem ao trabalho de fazer esta troca por puro altruísmo. O facto é que a abadessa ter disposto de bens que eram do mosteiro a favor de homens da sua família.

Se as abadessas não se distinguiam das suas monjas no trajar, distinguiam-se, e muito, em tudo o resto. Pela autoridade que exerciam, e pelas suas regalias. A abadessa tinha casa própria dentro do complexo monástico, fugindo assim à vida em comum, que com o tempo se tornava odiosa à maioria das religiosas. As abadessas tinham maior liberdade em receber visitas, maior liberdade nas saídas.

As cistercienses não tinham estrita clausura, mas esperava-se das monjas que só se ausentassem do mosteiro em casos de grande necessidade ou de óbvia utilidade, de serviço a que o seu cargo as obrigasse. A abadessa, essa, tinha pelo seu cargo, ou por aquilo que ela considerava de seu cargo, frequentes ocasiões de absoluta necessidade que a obrigavam a se ausentar do mosteiro. Dona Vierna, a primeira abadessa de Lorvão, esteve presente em Montemor no ano de 1221, quando aí se reuniu a corte. A abadessa firmou nessa ocasião com a infanta D. Sancha um contrato, que garantia ao mosteiro de Lorvão a futura posse da vila da Esgueira. Foi uma saída que se justificava plenamente Havia uma visita obrigatória anual a Coimbra, à igreja de São Bartolomeu. Era uma obrigação herdada dos monges seus antecessores, e que Lorvão tinha de manter se não queria perder prestígio e a regalia de uma pele e uma ‘colheita de pão, vinho e peixe’, que o cabido de S. Bartolomeu era obrigado a fornecer por ocasião daquela visita. As primeiras abadessas tinham deixado cair este direito, até que a abadessa dona Constança Soares o repôs, juntamente com outros direitos resultantes do desleixo de algumas das suas antecessoras. Outra saída bem documentada e de óbvia utilidade para o mosteirot é a da abadessa dona Teresa Mendes, quando, a 4 de Setembro de l341, acompanhada de tabelião, vai ao local da Pedra do Vento, junto de Coimbra, tratar de um cidral que o mosteiro aí tinha, do qual o rendeiro há quatro anos não só não pagava a renda, como instalara nele um sublocatário. A abadessa tratou directa e pessoalmente do assunto. ‘A honrada religiosa e honesta dona Tareja, pela mercê de Deus abadessa do mosteiro de Lorvão,’ postou-se diante da porta da casa do cidral e ‘fez pergunta a Joam Peres, dito Cidreiro,’ a quem pertenciam o cidral, a casa, a vinha, e o olival que ali estavam. ‘E logo o dito Joam Peres respondeu, que era da dita abadessa e do seu convento do dito mosteiro de Lorvão. E logo outrossim fez pergunta a dita abadessa ao dito Joam Peres, quem no metera no dito logo e de cuja mão o tinha, e o dito Joam Peres respondeu logo, e disse, que o metera ali André Domingues de Requeixo por renda certa que lhe ele havia de dar.’ A isso retorquiu a abadessa, que ela não estava ali para fazer ‘força nem esbulho’ a ninguém, mas que o dito André Domingues não podia arrendar o que não era seu, que aquele lugar era dela e do seu mosteiro, que elas não renunciavam aos seus direitos pelo que, declarou, ‘filhamos esta casa com este cidral e vinha e olival e suas pertenças, e entramos em posse dele em nome do nosso mosteiro’ . Lido isto pelo tabelião que estava presente, a abadessa dirigiu-se ao dito Joam Peres e disse-lhe que visto aquele lugar ser seu e do seu mosteiro, que ‘ele se fosse dele a boa ventura e que saísse ende’. João Peres obedeceu, saiu da casa, e deu ordem aos vindimeiros que lá estavam que também saíssem, o que eles fizeram. E ‘logo, relata o instrumento, os homens da dita abadessa, que ali estavam, filharam terra, e ramos de vides e de cidral, e do olival, e telha da dita casa e meteram na mão da abadessa, e ela disse que por todas aquelas coisas ela filhava posse daquele lugar como de seu, como quer que posse sua posse...’8

No período em que Lorvão teve jurisdição criminal em algumas das suas terras, as abadessas faziam-se em geral representar por um ouvidor seu. Caso excepcional foi abadessa regedora dona Mècia. Essa senhora não perdia ocasião de estar presente em casos de pleito. Em 1351 - Lorvão ainda tinha jurisdição em Abiul, direito que posteriormente lhe seria retirado - houve nessa terra o julgamento de um tal João Monteiro por uso criminoso dum cutelo comprido. Apesar do julgamento ser presidido pelo ouvidor do mosteiro, lá estava também dona Mécia, hospedada ‘na casa sobrada que foi de Joham de Runinaço’,

Outra vez temos a abadessa dona Beatriz da Cunha indo a Coimbra para se assegurar de certos bens que um tal Gonçalo Nunes Torrado tinha em contrato com o mosteiro, e que lhe queria deixar por sua morte. A abadessa não podia deixar fugir tal maná, e deslocou-se a Coimbra, acompanhada da prioresa, da sub-prioresa, da celeireira e da sacristã e ainda de outras religiosas do mosteiro. E não faltou evidentemente o notário para ali mesmo tomar devida nota das palavras do moribundo, autentificando a doação daquilo que depois de sua morte ficaria ao mosteiro. Toda aquela gente entrou na casa onde se encontrava o infeliz Gonçalo Nunes: “jazendo ali o dito Gonçalo Nunes doente em uma cama de dô de enfermidade”.10

A abadessa dona Catarina d’Eça saiu frequentemente do seu mosteiro, sobretudo nos primeiros tempos de seu abadessado. Agindo como qualquer proprietário rural, ela vai em 1471 à Esgueira, vila que era do mosteiro, e aí, em casa de João de Ruão[1], faz um emprazamento a João Pires Delgado. No ano seguinte, ela está no ribeiro da Barroqueira, termos de Penacova, e faz aí o emprazamento de uma vinha que o mosteiro tinha em Sabugosa. Nos últimos anos da sua vida, as saídas são mais raras, e os contratos em geral firmados em Lorvão em seu quarto, em sua ‘câmara’. Mas em 1503 há assunto de grande importância a tratar, e temos notícia de dona Catarina ter saído do mosteiro. Vai à vila de Esgueira para conseguir a composição entre o seu mosteiro e os habitantes dessa vila. Nos últimos anos vivera-se uma verdadeira revolta dos foreiros de Lorvão, a gente de Esgueira revoltando-se contra exigências dos administradores do mosteiro, e não era a primeira vez. Como donatárias de Esgueira as monjas de Lorvão tinham ali direitos que revoltavam os habitantes. Em 1428 houvera uma magna questão por os pescadores da Esgueira retirarem o peixe das redes antes de terem chamado o procurador do mosteiro, o que, segundo a abadessa de Lorvão, não podiam fazer. Ela tinha o direito de escolher o peixe que lhe cabia antes de ser retirado dos barcos. A coisa não ficou por ali, foi-se arrastando com periódicos focos de revolta contra essa obrigação. Em 1503, ambas as partes procuravam o apaziguamento da situação. O povo foia chamado ‘por pregão para esta causa de boa concórdia e amigável composição’, muita gente compareceu, e, por parte de Lorvão, estava lá a sua abadessa. ‘No ano do nascimento de N.S. Jesus Cristo de 1503, aos 23 do mês de Novembro em a vila da Esgueira, terra e jurisdição cível do mosteiro de Lorvão, no outeiro junto da ermida de S. Sebastião, estando ahi a muito vertuosa senhora, a senhora dona Catherina d’Eça de viva memória abadessa do mosteiro de Lorvão.’ 12 O assunto foi debatido, ambas as partes fizeram concessões, e chegou-se a um acordo provisório. Que talvez não se tivesse conseguido sem a presença da abadessa do mosteiro.

Em tempos de guerra ou de revoltas no país, também vemos as abadessas saindo dos seus mosteiros. Isolados, em geral afastados de povoações, os mosteiros eram particularmente vulneráveis aos saques da soldadesca, e nessas ocasiões era costume as religiosas refugiarem-se na cidade mais próxima. Há um emprazamento feito em 1385 em Coimbra, estando regedora e monjas alojadas nas casas de Dom Ruy Lourenço, ‘Daiam (sic) da dita cidade, em que pousamos de presente, ‘por necessidade da guerra.’

Saidas desnecessárias, idas à corte, peregrinações a santuários, passeios, de que abadessas de mosteiros ingleses e alemães eram acusadas, não houve em Lorvão, ou não foram tão escandalosas que dessem brado.

A mais frequente critica que na Europa medieval se fazia `às abadessas era a de serem más administradoras dos seus mosteiros. Despesas excessivas, contas que se deviam prestar à comunidade e não se prestavam, arrendamentos imprudentes, vendas de direitos centenários do mosteiro contra moeda sonante, de tudo isso houve em Lorvão.

Contra uma abadessa despesista e má administradora pouco havia a fazer, a não ser dar-lhe depois de morta uma sucessora competente. Como sucedeu em 1288, quando, com o mosteiro em estado de pobreza, ‘paupertate’, as monjas puseram fim fim ao longo governo de compadrio Sousas e Brieiros, e elegeram na abadessa dona Constança Soares, uma grande administradora. Sucedem-se com ela os emprazamentos de parcelas de terras destinadas a olivais, com rigorosas indicações do plantio, com boas e saudáveis plantas e, ‘escavados e cavados e estercados como os bons olivais de Coimbra e ao tempo em que o deve de ser’. Dona Constança procurou também reaver terras perdidas e outros bens alienados, conseguindo até que o bispo de Coimbra, que em geral não era pródigo em cedências, concordasse em que as igrejas de Abiul e do Botão se unissem de novo a Lorvão, coisa até ali muito disputada entre os prévios bispos e as abadessas. No instrumento feito por essa ocasião, o Bispo declarava que, atendendo à pobreza e à carência de que sofria o mosteiro, ‘paupertate et megnam inopitam Conventus Santimonialem Monasterii de Lorbano’, e também em consideração da sua abadessa ‘ab honorem Religiosae Donae Constantiae Sueri’, ele, Bispo Américo, consentia de novo na união das duas igrejas ao mosteiro de Lorvão. A recuperação de direitos abandonados ou perdidos era um dos grandes problemas que as abadessas, que sucediam a uma má administradora, tinham de enfrentar. Nada parecia mais fácil a uma abadessa que precisava urgentemente de dinheiro do que vender uma terra ou um direito.

Dona abadessa - era assim que a partir do século XIV mais comummente se nomeava a superiora do Lorvão – assinava sempre com a sua comunidade ‘Nós Maria Joanis Abbatissa et convento monasterio de Lorbano.’ lê-se em documento de 3 de Maio de 1288. Em 1300, a abadessa Dona Constança Soares dirigia-se ao povo usando o título de Don, e prescindio de quando escrevia ao bispo de Coimbra “Constancia Suery eidem gratia Abatisse de Lorvão et conventus eiusdem” Também a abadessa Urraca Reimundo rescinde do Dom quando se dirige a um bispo. ‘Nós Orraca Reymundo e o convento do mosteiro de Lorvão vos enviamos comendar em vossa graça...’ lê-se em documento datado de Julho de 1328 dirigido ao bispo de Viseu. As abadessas Cunha e Eça, senhoras que não transigiam sobre os seus pergaminhos, usam sempre o Dom, quer se dirijam a bispos quer a leigos. Uma delas, Dona Maria de Cunha, faz mesmo questão de mencionar o seu nascimento, assinando em 1 de Agosto de 1435 um contrato como dona Maria da Cunha, ‘de nobil genere’. ‘Com as Eças não havia que vincar nascimento. Os Eças eram de sangue real, passaram a ser ‘magníficas’: ‘Na câmara da muito magnífica e virtuosa senhora’, lê-se em documento de dona Catharina d’Eça. A sua sucessora foi a ‘muito magnifica senhora, a senhora Dona Margarida d’Essa’

Das abadessas esperava-se qualidades de administradora, e autoridade sobre o seu convento, em privilegiar umas, ou uma, das suas religiosas, e evidentemente um irrepreensível comportamento. Os escritores do século XIX deliciavam-se quando encontravam escândalo amorosos nos mosteiros, e assim nasceu a acusação que a grande dona Catarina d’Eça tivera oito filhos. Coisa absolutamente impossível quando se sabe da periódica, rigorosa visitação de que os mosteiros da Ordem de Custer eram alvo. Porém, como este tipo de boatos notícias têm por vezes uma base de verdade, sugiro que essa mãe de oito filhos, se na verdade existiu, fosse irmã gémea da abadessa dona Catarina. O facto de se dar o mesmo nome a gémeos tem conduzido a mais do que um erro genealógico.




1 T.T. Lorvão . Lº 40-206v
2 T.T. Lorvão. Lº 40-69v
Vintena do mar, ou da marinha, designava, segundo Viterbo, designava o arrolamento de jovens para servirem a bordo dos navios das armadas. Dos homens de uma vila ou aldeia postos em ala, era tomado de cada vinte, um. Eram os ‘vintaneiros’ do mar, da marinha ou das galés. Ver-se livre da vintena valia bem uma marinha de fazer sal.
 3 T.T. Lorvão. Gavetas 06-Mº1
5 TT. Lorvão Col. Esp,. Mº9-Nr.17,18
Jacinto Vieira, um artista bracarense, esculpiu estátuas em tamanho natural das monjas de Arouca com esse elegante hábito
6 TT. Lorvão. Col. Esp.. Mº10-Nr.14
7 T.T. Lorvão Gavetas06-Mº 7
8 T.T. Lorvão. Livro 40-233,233v
10 T.T. Lorvão. Gavetas2-Mº 2-Nr.22
11. João de Ruão ou Jean de Rouen (Ruão, 1500 – Portugal, 1580 foi um escultor e arquiteto de origem francesa ativo em Portugal entre aproximadamente 1528 e 1580
12 T.T. Lorvão Livro 313

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº V UMA INSTITUIÇÃO ARISTOCRÁTICA

>> terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O ideal do monacato, ideado por homens para homens, inspirou mulheres de fé a seguir o exemplo. Nasceram pequenos cenóbios de mulheres vocacionadas para a severa vida ‘em religião’, rezando e trabalhando. Por aí devia e podia ter ficado, se a sociedade civil não tivesse descoberto e usado o mosteiro para seu uso particular. Os mosteiros abriram as portas a postulantes,que para lá entravam - ou para lá eram enviadas - sem vocação, e por razões puramente materiais. Os reis descobriram a utilidade dos mosteiros para arrumar uma princesa a quem seus pais não conseguissem casar à altura da sua condição.

Maria de Aragão e Castela, Rainha de Portugal
No seu testamento, a rainha D. Maria, segunda mulher de D.Manuel, pede ao marido em espanhol aportuguesado, que ele procure bons casamentos para as filhas, e que, caso não o consiga, que as meta freiras, mesmo contra sua vontade: “Suplico al Rey meu senhor, que a nossas filhas em ninguna manera não las case sinon con Reis e filhos de reis legitimos, e quando esto non possa ser, que as meta freiras, ainda que elas non quieran, porque melhor serviran a Dios, que não casalas en el reyno, e bien lo sabe Sua Alteza quantas fortunas tiene pasadas sua hermana por casar en el Reyno y a elas ruego e peço, que non casen senon como aqui digo, ainda que Sua Alteza se lo mande sob pena de minha bênção". Mosteiro nesses moldes eram uma aberração. Aberração que proliferou e se manteve durante séculos.

Antes de ser aceite, a jovem candidata a professa no mosteiro era examinada quanto a qualidades morais, intelectuais e físicas. E atendia-se discretamente ao dote que dela se podia eventualmente esperar A Regra de São Bento partia do princípio, que um convento possuiria bens suficientes para sustentar a sua comunidade. Pelo que, idealmente, não seria requerido dote. São Bento não pudera prever a avalanche de mulheres que os próximos séculos iriam levar para os mosteiros. O dote era agora uma necessidade. Não se podia exigir à futura religiosa contribuição em dinheiro, mas nenhuma abadessa em seu pleno juízo recusava uma terra, um pomar, uma casa na cidade, que os pais quisessem oferecer à filha que entrava em religião. A monja era dona dos bens que trouxera em dote, subentendendo-se que estes seriam por ela legados ao mosteiro, ou doados em vida a outra monja, que por sua vez disporia a favor do mosteiro. Foram muitas as terras que Lorvão herdou das suas monjas Em 1260, a abadessa de Lorvão afora um casal em Vila Quebrada, vila que depois, como lemos, se chamaria da Cerveira, com a menção de que este casal fora de Estevania Rodrigues, sua monja. Em 1264, a abadessa dona Marina Gomes, uma Briteiros, troca com João Rodrigues de Briteiros uma terra que fora trazida para Lorvão por outra Briteiros. Em 1272, os visitadores de Claraval, que estavam então em Portugal, tiveram de conciliar as abadessas de Lorvão e de Arouca, que disputavam para os seus respectivos mosteiros os bens de uma monja que de Lorvão, fora para Arouca. Em 1291, Estevaninha Vasques, monja de Lorvão, faz partilhas com seu irmão Fernão Vasques de Figueiredo, e por ela irão ficar a Lorvão dois casais que então herdara. Em 1311, Pedro Afonso Ribeiro doa a Aldonça Pires ‘dona confessa do mosteiro de Lorvão’, uma almuinha no termo de Coimbra, ao pé do mosteiro de São Francisco. Almoinha que, depois de sua morte, ficará ‘sem contenda nenhuma’ para o mosteiro. Por almoinha entendendia-se, segundo Viterbo, uma ‘horta fechada sobre si, terra de pomar, parreiras e hortaliça, frutos, ervas e árvores que servem de matar a fome’. Outra almoinha perto de Coimbra vem parar ao mosteiro pela monja Urraca Pais, filha de Pedro de Molnes. Outra almoinha ainda, denominada de São Lourenço, que em 1317 era já de Lorvão, viera para o mosteiro por morte de Dona Maria Afonso. Em 1326, Gonçalo Pires doa a Guiomar Gomes a sua quinta do Carapinhal no termo de Mortágua, e por morte da dita Guiomar Gomes, a quinta fica para Lorvão O mosteiro tinha propriedades na Pampilhosa, em Cernadelo, em S.João de Loure, em Urgães perto de Tomar, em Carnide junto de Lisboa, tudo herdado de monjas suas. No termo de Tábua as monjas de Lorvão tinham a quinta da Portela, que fora dos Cunha, e na Rebordinha em Coimbra tinham mais ainda.

A coisa não podia durar, os reis não viam com bons olhos o enriquecimento dos mosteiros em detrimento dos particulares. Foram, promulgadas leis, proibido a aquisição de bens de raiz por parte de religiosos e mosteiros, assim como doações e disposições testamentárias a favor de institutos religiosos. Lei que os reis frequentemente ajudavam a violar. Em Lorvão dar-se-ia disso um flagrante exemplo. Uma certa Maria da Panha, ‘dona filha dalgo e de bom logo’ tinha ‘muitas herdades e bens’, que desejava dar em vida a sua filha, dona Guiomar, monja em Lorvão. Eis se não quando D.Diniz resolve promulgar a lei proibindo as monjas de herdarem bens de raiz. Dona Maria da Panha não vacila. Entra também ela como monja para o mosteiro de Levando trazendo consigo todos os seus grandes bens. Pede ao rei - conclui-se que o fez em pessoa – que fosse permitido a sua filha herdar esses bens. D.Diniz, atendeu o pedido, ‘fez-lhes graça e mercê, e permitiu que os seus bens ficassem a sua filha, e, consequentemente, dela passassem a Lorvão. Os bens de dona Maria da Panha estendiam-se por montes e vales, com terras e casas em Paredes de Gestaçô, em Sobrado de Paiva, em Linhares, e de lá até à Guarda, em Torres Vedras e em muitos outros sítios.

Os mosteiros de mulheres não foram entusiasticamente aceites pelas Ordens. Mas era escusado protestarem. À cabeça dos mosteiros de mulheres estavam abadessas de grandes famílias, mulheres influentes que eram ouvidas na Corte por elas, ou, se necessário, por alguma das monjas que tivesse laços de família com a personagem de quem podia depender uma decisão importante. E os soberanos, que periodicamente se insurgiam contra os ditos mosteiros, fundavam outros. Odivelas foi fundação de D. Diniz. Seu filho bastardo, D.Afonso Sanches, fundou o mosteiro de Santa Clara em Vila do Conde, deixando uma verba destinada a lá manter duas religiosas, que tinham por missão rezar por ele e por sua mulher. O exemplo dos reis foi seguido por famílias nobres, fundando pequenos mosteiros nas suas terras, ou perto delas, colocando neles as suas filhas para que rezassem pelos pais e lhes alcançarem o perdão das suas culpas. Em geral reservavam para si o direito de lá se hospedarem. O que faziam com tal frequência e tanta demora que acabavam por ser a ruina da sua própria fundação

Grandes ou pequenos, os mosteiros medievais de mulheres foram necessariamente instituições aristocráticas. Para a rapariga nobre, era ‘desonesto’ não era aceitável, exercer uma profissão. Casava, ou à falta disso, entrava em religião.

Nas famílias de mercadores e obreiras na cidade e no campo, o problema não se punha. Se as filhas não encontravam marido, não lhes faltavam ocupações e profissões que podiam exercer e exerciam. Na cidade, as filhas dos pequenos comerciantes e artesãos trabalhavam, vendendo e fabricando. No campo, as filhas ajudavam os pais nos trabalhos da lavoura. Se não casava, era mais um braço para trabalhar. E havia, então como sempre, os trabalhos domésticos, em casa, ou para fora.

Houve alguns conventos abertos às famílias da alta burguesia. O mosteiro de Chelas, da ordem de São Domingos, junto a Lisboa, foi por excelência, e, pelo menos, até à primeira metade do século XV, convento das filhas da alta burguesia lisboeta.

A classe dos mercadores ricos e os altos magistrados rivalizava com a fidalguia, possuidora de bens patrimoniais nem sempre muito produtivos. Essa gente de dinheiro e de letras não tinha grande hipótese de colocar as filhas em mosteiro fundado, ou há muito dominado, pela alta nobreza. Teve em Chelas o seu convento. Encontram-se entre as suas religiosas filhas de magistrados, como as Alvernazes, filhas e sobrinhas de grandes mercadores, uma das prioresas era sobrinha direita do riquíssimo João Palhavã. Há em Chelas filhas de famílias estrangeiras estabelecidas em Lisboa, como as Reineis e as Donteis. Chelas abria as portas a mulheres viúvas, e a mulheres separadas de seus maridos. Chelas é um curioso caso, talvez um dos mais interessantes mosteiros português, e, para a história de Lisboa, uma mina de informações. Mas quando se fala de vida monástica feminina no Portugal medieval, está-se falando dos grandes mosteiros, fundados pelo rei ou por membro da família real. Está-se falando de Arouca, de Celas, de Santa Clara de Vila do Conde, e, evidentemente, de Lorvão, o nec plus ultra em mosteiro de mulheres.

Os superiores das Ordens tiveram cedo consciência dos problemas inerentes à vida em comum de muitas mulheres. A mulher é mais suscetível que o homem, irrita-se mais que este com modos e maneiras do seu semelhante. A irritação podia tomar proporções explosivas. Em consequência, na admissão de uma religiosa olhava-se muito à condição física da candidata. O defeito físico podia incomodar, meter nojo e causar grandes problemas. No mosteiro da Madre de Deus de Lisboa foi muito discutida a entrada de uma noviça, natural da Guarda, por as religiosas não lhe poderem avaliar a condição física com os próprios olhos: ‘nos pareceu em os primeiros combates cousa ridícula tomar uma mulher de setenta ou oitenta léguas daqui, de quem não podíamos saber se era torta ou aleijada, ou alguma selvagem, que é ainda pior aleijão".2 Em Lorvão não encontramos menção de mulheres aleijões, ou surdas, ou com outro defeito físico incomodativo, mas encontram-se numerosos casos de irmãs gémeas, o que no tempo era considerado uma anormalidade, mas não um defeito incomodativo.

Requeria-se também que as monjas tivessem boas maneiras e uma razoável cultura para que não se incomodassem umas às outras. O ensino de boas maneiras era tomado muito a sério, seguindo com variações pontuais a regra que Santo Agostinho redigira para a ordem fundada por sua irmã. Para poder haver um relacionamento pacífico e agradável das religiosas entre si, Santo Agostinho recomendava que a mestra de noviças instruísse a jovem professa nesse sentido. Além de ensinar a ler às que não o sabiam - o que era a maioria delas - a mestra devia informar as noviças dos costumes do seu mosteiro e incutir-lhes modéstia e boas maneiras. Devia admoesta-las a que não se gabassem de parentesco com pessoas graves, ‘nem se jactem de fidalguia ou nobreza da sua geração’. E que não se ‘ensoberbeçam com as honras do século, ou riqueza dos pais, ou parentes.’ ‘E que as ricas ponham em comum o que tenham; as pobres não queiram ter no mosteiro o que não tinham fora dele. E que as pobres não se enalteçam por ter trato com aquelas às quais lá fora se não atreveriam a chegar´.

 
Santo Agostinho

Os séculos não apagaram o valor dos preceitos de Santo Agostinho sobre a melhor forma de viver em comum, ‘em sociedade’, e a sociedade civil adoptaria gradualmente para si alguns dos preceitos de ‘boas maneiras’ estabelecidos para religiossas.

A par de disciplina religiosa, a noviça aprendia regras de comportamento. Às monjas de um mosteiro inglês era ensinado que, à mesa, as religiosas não se deviam encostar com os cotovelos, não deviam comer de boca aberta, não deviam escolher para si os melhores bocados Nos mosteiros alemães havia igual preocupação com boas maneiras. Na Alemanha o ‘Novizenspiegel4, ou “Espelho de noviças”, recomendava à noviça: que não coma com a rapidez da gula, como se receasses que não chegasse para ela. Que não se inclinasse sobre a comida, que não olhasse em redor para ver se não haveria outra que tivesse mais e melhor que ela. Ao sentarem-se, as monjas deviam fazê-lo bem direitas, segurando as extremidades dos seus mantos ou cogula, dizia-se às monjas inglesas. Nos locais de silêncio deviam manter as mãos nas mangas da cogula. Não deviam estender demasiado as pernas nem cruzar os joelhos, um sobre o outro. Deviam cobrir os pés honestamente sob as suas vestes e não brincar com eles. Quando sentada entre duas companheiras, a monja devia fazê-lo de modo a não ter a cara virada só para uma, ou só para a outra das suas vizinhas, e não estar de costas viradas para uma ou para outra, nem virando a cabeça alternadamente de um lado para outro. E nada de sonoras gargalhadas. A mestra das noviças devia ensinar as suas pupilas a ‘não serem fáceis em rir, e menos com risos acompanhados de vozes altas.’, A religiosa ‘não devia rir em demasiado nem a despropósito”, ensinava-se também às inglesas. Contudo, caso o soberano, ou alguma das irmãs mais idosas, rissem, a brincar, de alguma outra irmã, ou irmãs, então, ‘cortesmente, por amor à qualidade, deverão sorrir ou rir modestamente também’.

 O estar de pé também tinha os seus preceitos. Não se devia estar só sobre um pé, com o outro encostado, nem com um cruzado sobre o outro, diziam as mestras inglesas a suas pupilas. A monja manter-se-ia em pé, direita, ligeiramente encostada na cadeira do coro, com as mãos diante de si, dentro dos mantos ou das mangas da cogula.

O andar não devia ser de cabeça no ar, recomendava-se às monjas portuguesas, mas sim ‘com os olhos postos em terra e as mãos recolhidas debaixo do escapulário ou dentro das mangas do hábito junto à cintura’.

Quando professava - com a pompa devida, com ofício religioso próprio - a noviça fora ensinada a ler, escrever e cantar, e estava formada em boas maneiras. E -idealmente - não irritaria as suas companheiras.

 


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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº IV O MOSTEIRO

>> quarta-feira, 6 de janeiro de 2016


‘Vão para o deserto’, dissera Jesus, dando voz à arreigada ansiedade de alguns homens. E os desertos povoaram-se de ‘monacos’, de homens vivendo só. Por ‘deserto’ entende-se o ermo longe das povoações, não obrigatoriamente um ermo árido de areia ou pedra. Um local isolado, sim, mas fértil, onde haja água. Frequentemente um local aprazível, ou mesmo de grande beleza natural, porque o homem que procura Deus anseia por encontrar provas visuais da existência divina na paisagem que o rodeia.

            Há um homem que descobre o seu lugar no deserto, é o primeiro cenobita. Que não fica só por muito tempo. Mais tarde ou mais cedo, por meios de comunicação que mal se explicam, a notícia da sua existência chega aos ouvidos de outros que, como ele, procuram Deus na solidão. Atraído pela fama do local ou do seu eremita chega ali outro aspirante á tranquila vida contemplativa. À cela inicial junta-se outra e outra, e em pouco tempo existe um núcleo de células. É um cenóbio. Constatam também ser mais cómodo e mais seguro juntar sob o mesmo telhado as células individuais. Constroem casa que os albergue a todos. É o mosteiro.

Em breve torna-se necessário a estes homens solitários, que vivem juntos, aquilo que preside a todas as sociedades: uma regra de conduta. No século VI esse instrumento nasceu. Obra de Bento de Nurcia, fundador da Ordem beneditina, o seu livro de conduta, a sua Regra..

‘Se for possível, escreve São Bento, ‘edifique-se o mosteiro de maneira, e em parte que tenha de portas a dentro tudo o que for necessário. Convém a saber: água, moinho, horta, forno e que todos os ofícios se exercitem dentro do mosteiro’.

            Foi obedecendo a estas diretrizes que nasceu, e foi evoluindo, o plano de construção a que obedeceriam com poucas variantes, praticamente todos os mosteiros de raiz beneditina, particularmente os da Ordem de Cister, seus abades resistindo sempre às modificações que lhes eram propostas.

Em 1533, estando em pleno entusiasmo de reforma monástica, D. João III questionou frei João Claro, abade de Alcobaça, sobre alguns melhoramentos que propunha mandar executar no seu mosteiro. Frei João não apreciou as ideias de Sua Alteza - abades e abadessas eram na sua maioria da opinião que el-rei não se devia meter onde não era chamada - e rejeitou quase todas as reais sugestões. De uma proposta declarou que dessa forma não convinha, na biblioteca era melhor não mexer, por tal e tal razão, o chão sempre fora ladrilhado, não convinha que fosse lajeado como el-rei sugeria. Em suma: nos mosteiros cistercienses não se podia mexer porque eram todos feitos segundo o mesmo plano. ‘Senhor, as nossas casas são todas fundadas em uniformidade’ escrevia frei João Claro.

E assim era quando se tratava de mosteiros fundados de raiz pela ordem de Cister. O que não era o caso em Lorvão, que nascera antes da Ordem de Cister ter visto a luz do dia. Não há pois que imaginar o mosteiro que as monjas de Cister vieram a herdar em Lorvão como típica casa monástica cisterciense.

Em um pequeno livro manuscrito proveniente do mosteiro de Alcobaça, um tal Frei Hilário das Chagas, reuniu, entre textos de natureza diversa, alguns apontamentos referentes a mosteiros de religiosas da sua Ordem. Há notas – ‘títulos’- sobre os mosteiros de Odivelas, de Celas, de Arouca, de Lorvão e de Coz. O capítulo que trata de Coz é da autoria do próprio Frei Hilário, e data de 1572; os apontamentos sobre os outros mosteiros, entre os quais o de Lorvão, são de autores desconhecidos e datam de l491 e de 1496. Um desses autores escrevera então sobre Lorvão: ‘Este muy insigne mosteiro de Lorvão está fundado em uma terra de muito pouca consolação, entre umas serras mui ásperas e cobertas de muita carqueja. E de redor deste mosteiro não há lugar para fazer uma horta, que tudo não seja pejado dos ditos servos (sic), e o sítio do mosteiro é lugar mui frio e húmido e sem condição alguma para mulheres ou para homens, somente tem muita água e boa.’1 

            Cabe perguntar o que teria acontecido a vinhas e hortas que havia junto do mosteiro quando lá se instalaram as monjas. Os documentos comprovam que as monjas aforaram hortas e vinhas junto do mosteiro pouco tempo depois de lá se instalarem. No entanto, no século XVI, como se leu, hortas e vinhas tinham desaparecido dando lugar à carqueja. Outra apreciação do local, feita uns anos depois, pouco difere desta. Frei Claude de Bronseval, secretário do abade Claraval dom Edmé de Saulieu, que, em 1531, veio a Portugal inspecionar os mosteiros cistercienses, descreve a primeira impressão que teve do mosteiro. Atravessando os montes do Bussaco, o abade e a sua comitiva atingiram um píncaro do qual avistaram Lorvão, situado dentre dois montes assustadores ‘horridos montes’, em local horrível e numa solidão absoluta, ‘in loco horroris et vasta solitudines’.

 
A sul situava-se a casa monástica propriamente dita. Tinha por centro o claustro, e, em torno deste, o refeitório, o dormitório, e as outras dependências funcionais como cozinha, celeiro, tulha. Ficava também aí a casa de abade ou abadessa, a casa para doentes e velhos e a enfermaria. Era espaço reservado exclusivamente às habitantes do mosteiro. Por vezes o conjunto dos edifícios era cercado por um muro, formando uma cerca. Simples, funcional, magistralmente concebido para o fim a que era destinado: albergar condignamente homens ou mulheres vivendo segundo uma regra, assim era o mosteiro.

Quando em 12111 os monges foram expulsos de Lorvão e instalado lá um pequeno grupo de monjas não haveria de proceder a grandes alterações. Igreja, casa para abadessa, casa de capítulo, refeitório, dormitório, oficinas, tudo isso existia e pouca adaptação terá sido necessária. A igreja que hoje existe ocupa o mesmo local daquela que os primeiros monges ali construíram. Crê-se que ela foi em dada altura aumentada no sentido do comprimento, mas mesmo assim não se obteve uma igreja grande. A igreja primitiva seria portanto de proporções modestas, de uma só nave, segundo o protótipo das igrejas da região conimbricense. A situação era, tal como hoje é, de nascente poente, com o altar- mor virado para o sol nascente.

            No altar repousavam as relíquias de S.Mamede e S.Pelágio, os santos da devoção dos primeiros ocupantes do mosteiro. As suas sucessoras, não partilhavam da mesma devoção, os dois primeiros santos protectores iriam gradualmente cair no esquecimento, e quando a infanta D.Sancha enviou para Lorvão os ossos dos frades franciscanos martirizados em Marrocos, seriam essas as relíquias dali em diante veneradas.

No tempo dos monges, a igreja teria provavelmente, além do altar-mor, alguns altares laterais, onde aqueles monges que eram clérigos, pudessem rezar, além das missas diárias obrigatórias, as inúmeras outras que lhes eram encomendadas. É pouco provável que as monjas tenham feito desaparecer. Era sabida a queda que elas tinham por pequenos altares dedicados a algum santo de sua devoção, e que, quando os não podiam ter na sua igreja, os espalhavam pelo claustro. Uma alteração importante que fatalmente se deu na igreja foi a mudança do local do coro. Que era o espaço onde se sentava o conjunto dos monges durante os ofícios divinos.

            Nos mosteiros de homens o coro com os seus cadeirais era junto do altar-mor, em situação de receber a luz do sol nascente, alumiando os ofícios das primeiras horas da manhã. E quando se pensa na modesta iluminação artificial que se conseguia pelos meios que então existiam, e se recorda que os monges - se bem que devessem saber de cor parte da liturgia - tinham de ler as leituras do dia, compreende-se o imperativo de haver boa luz natural no coro. Também as monjas tinham necessidade de boa luz para as suas rezas. Mas a rigorosa segregação que a Regra impunha, requeria que o seu coro fosse em lugar afastado dos oficiantes, e, consequentemente, do altar-mor. Cremos pois que, em 1211, uma das modificações efetuadas na igreja do mosteiro, seria o recuo do coro para a parte traseira da igreja. O que tinha como consequência que se tapava ou, pelo menos, inutilizava, a primitiva porta de entrada. Haveria portanto que abrir outra porta para admitir os fiéis. E assim sucedeu. Ainda hoje, em Lorvão, se entra na igreja por uma porta lateral praticada na sua parede norte.

            Quanto ao cadeiral - os renques de cadeiras colocadas no coro - este teria forçosamente as características de todos os cadeirais dos mosteiros, e teria pelo menos quarenta lugares, já que fora esse o número de religiosas, previsto pela nova padroeira.

Os cadeirais eram uma obra de marcenaria estudada para dar algum conforto a homens e mulheres obrigados a passar longas horas na igreja, rezando ou cantando. Numa luta constante contra a humidade sempre prevalecente em edifícios que, na sua grande maioria, se situavam nos fundos dos vales, os cadeirais assentavam em geral numa ligeira elevação de pedra ou de alvenaria. Os assentos eram distribuídos por duas alas que se faziam face, cada uma com duas ou mais fileiras em degraus. Os assentos das últimas fileiras tinham possivelmente costas altas e talvez um dossel de madeira como protecção adicional contra o frio e as correntes de ar. Na divisória que separava os assentos, as monjas podiam poisar os seus livros ou, cuidadosamente, alguma vela. Estavam verdadeiramente ‘encaixadas’ nas suas cadeiras.

 

Cadeiral construído no séc XVIII em substituição do cadeiral primitivo
 

             Munidos de gonzos, os assentos das cadeiras podiam levantar-se para trás e já no século XIII se introduzira neles uma pequena prateleira afixada por baixo do assento, uma comodidade que viria a ser conhecida por ‘misericórdia’. Levantando os assentos, as monjas podiam apoiar-se nesta prateleira quando rezavam de pé. Eram uma ‘misericórdia’. Entre as duas alas dos assentos colocava-se a estante que suportava os livros de canto. Estante grande e forte, porque os livros também o eram, enormes até. A fraca iluminação artificial que se obtinha exigia letras grandes e havia que ter em consideração aquelas que viam mal. Óculos só começam a aparecer no século XV.

            A necessidade de mudar o local do coro e o consequente encerramento do portal primitivo deve ter colocado os instaladores das monjas perante outro problema. Sabe-se com efeito que a igreja do mosteiro servia desde tempos imemoriais de igreja paroquial aos fregueses do burgo. Tinha portanto de existir na igreja uma fonte baptismal e um altar próprio para uso dos paroquianos. Nos mosteiros de homens, quando nas suas igrejas havia serviço paroquial, o altar dos paroquianos situava-se em geral junto à porta de entrada, encostava à traseira do coro. Assim sucederia decerto em Lorvão em tempo dos monges. Quando, com a nova situação, os fregueses passaram a entrar pela pequena porta lateral na parede norte da igreja, seria decerto também desse lado, perto da nova entrada, que se colocaria o altar paroquial.

Era grande incómodo, na opinião das monjas, que a sua igreja servisse de igreja paroquial à gente de Lorvão. Incómodo que só terminaria no século XVIII, quando a abadessa dona Serafina da Câmara mandou fazer à sua custa igreja própria para os paroquianos de Lorvão Foi também nesse tempo que se fez um claustro novo, por ameaçar ruína o claustro velho que ainda datava do tempo dos monges. A expressão ‘fez-se claustro novo’ usado pela cartorária é enganadora. Não se tratou de fazer claustro em outro local do que aquele que desde início ocupara. Desse primitivo claustro, aquele que as monjas medievais conheceram, conservam-se fragmentos das colunas e dos capitéis românicos no Museu Machado de Castro de Coimbra O claustro era o ponto de comunicação que ligava entre elas as várias dependências da casa monástica. Inspirado no traçado do átrio das vilas romanas, o claustro consiste de um quadrado central ajardinado, ladeado de corredores tapados, abertos para o centro por meio de arcaria assente nos muretes dos corredores. Dos corredores do claustro abriam portas dando acesso às dependências contíguas. No corredor sul havia portas abrindo para a igreja, uma mais pequena, que dava entrada para o coro, outra, maior, que abria junto do altar-mor. A nascente, uma porta mais ornamentada dava acesso à casa do capítulo. Em todos os grandes mosteiros a porta para a sala capitular era ornamentada com particular grandeza e assim sucedia também em Lorvão. Como ainda hoje se pode constatar. A Casa do Capítulo tinha acesso à Igreja, e o nome nascera do uso que os monges faziam dessa sala para ouvir um capítulo da regra de São Bento depois do ofício de Prima. A casa foi sendo conhecida por sala de capítulo, e estabelecida como o local onde se realizavam reuniões importantes. Era lá que se procedia à eleições dos prelados ou preladas. Era também ali que o ‘visitador’, tendo terminado a sua visita de inspeção, fazia as suas observações às monjas, e onde lhes era lida a acta da visitação. Era também na sala de capítulo que se concluíam em geral os contratos de venda e emprazamento de maior importância, ou pelas elevadas somas da compra ou venda, ou pela categoria dos compradores ou vendedores.

Os mártires de Marrocos do mosteiro de Lorvão
Museu Machado de Castro
Nos mosteiros de mulheres decerto não houve de inicio essa sala. O que sucedeu foi ter-se estabelecido a expressão ‘fazer capítulo’ quando se tratava de reunião para a qual todo o convento era chamado a assistir. O que nem sempre se dava em sala destinada a esse fim. As monjas gostavam de variar o local das suas reuniões. Os documentos falam de reuniões realizadas em este ou aquele local, as monjas sendo chamadas para ele por toque de campainha. Assim, no dia 20 de Dezembro de 1400, realiza-se uma troca de propriedades do mosteiro por outras, e o contrato dessa troca - feita aliás entre o convento e a própria abadessa - realizou-se ‘no dito mosteiro ante as portas do coro sendo hy a honrada e religiosa dona Mecia Vasques da Cunha e o convento do dito mosteiro em cabido por campa tangida, como é de seu costume, todas juntas e chamadas especialmente para isto’ Em 1432 o emprazamento de um olival é feito no mosteiro ‘dentro no balcão que está junto com a casa que chamam do Pereiro Velho sendo ali a honrada senhora dona Mecia Vasques da Cunha, abadessa, e convento, juntas em Cabido e Cabido fazendo’.

Era nesta casa monástica, neste ‘monasterio’, que devia viver ‘em religião’, um grupo, um ‘convento’, de pelo menos doze ‘monacas’. Idealmente, a abadessa amava as suas monjas, e a todas da mesma maneira, e estas veneravam e amavam a sua abadessa. As anciãs seriam carinhosamente tratadas, as orações seriam rezadas a horas e sempre com a maior devoção, o claustro seria um oásis de silêncio, e todas as monjas executariam entusiasticamente os mais humildes trabalhos. É assim que um autor anónimo francês descreve no século XIII, numa pequena obra que intitulou ‘La Sainte Abbaye’ o convento ideal. Uma miniatura do manuscrito mostra as habitantes desse santo mosteiro na igreja e no claustro. Contra um fundo doirado, um grupo de monjas assiste à missa e participa numa procissão. A abadessa segura o seu báculo, a sacristã toca o sino, a celeireira tem as suas chaves à cintura. Outras monjas seguram livros de canto ou de oração nas finas e compridas mãos. Todas as monjas são belas e aristocráticas senhoras levando o seu hábito com suprema elegância. Era o ideal. A realidade era um pouco diferente

As doze monacas do mosteiro ideal foram-se multiplicando, as mulheres de eleição que optavam de livre vontade por uma vida em oração desapareciam no aglomerado de mulheres que entravam para o mosteiro ideal por razões que nada tinham a ver com religião e oração, adaptou-se às novas realidades. A evolução não foi igual em todos os mosteiros. A história dos mosteiros de mulheres na Idade Média é a história de mulheres que humanizaram à sua maneiro habitat que não tinham escolhido, que lhes era estranho. O mosteiro não desapareceu, o nome ficou, na sua essência não tinha nada a ver com o mosteiro ideal de doze monácas.

 


O mosteiro ideal

                 

 




1 B. N.  Col. ALCOBAÇA 

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