*2* O Escritor 9 de Outubro 2008

>> segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Num dia de fins de Setembro, há anos, seriam talvez oito da noite quando ouvi - vindo da árvore grande do jardim próximo da minha casa - o grito de dois pássaros. Ou gritos, já que eram dois. Não mais que dois, mas também não só um. Dois. Não era canto aquilo que ouvi, eram gritos selvagens. Vozes fortes de pássaros grandes. O que diziam não sei, porque não conheço a língua deles. O primeiro talvez anunciando a chegada, e o outro respondendo, que também ele, ou ela, já ali estava, que finalmente já ali chegara.
Mais alguém da vizinhança deve ter ouvido o que eu ouvi e estranhando-o decerto como eu estranhei. E quem sabe se esse alguém não pensou como eu, que aqueles dois pássaros, poisando ali ao anoitecer, estavam de passagem, certamente vindos do Norte, ou para lá seguindo. E até, quem sabe, se não houve alguém que, tal como eu, sentiu um arrepio ouvindo aqueles gritos selvagens na noite. De dois pássaros que não ouviríamos mais.. Houve alguém com certeza que ouviu o que eu ouvi. Mas decerto não o escreveu. A não ser que seja também ele, ou ela, uma dessas estranhas criaturas que põe - ou tenta pôr - em palavras escritas o que vê e que sente. Um escritor.
Curiosa personagem, a do escritor. Que se levanta de madrugada, quando nada a isso o obriga, para escrever. Que em tempos em que não havia máquinas de escrever e não se sonhava com computadores, encheu da sua mão, à pena ou a lápis, páginas e páginas de palavras, exprimindo ou tentando exprimir ideias, conhecimentos, sentimentos. É o escritor.
Escritor. Autor de composições literárias e científicas, diz o dicionário. Autor. Homem de letras. Romancista? Ficcionista? Novelista? Definições várias dessa estranhíssima criatura à qual qualquer coisa dentro dela obriga a escrever, que sacrifica amizades, vida social, horas de sono, saúde por vezes, para escrever. Que oferece timidamente o seu produto, que mendiga que façam o favor de o lerem. Que sabe que o seu livro, aquilo que lhe custou horas de trabalho, será lido por escassíssimas pessoas e durará escassíssimo tempo. Seis meses, talvez, se tanto. A não ser que tenha produzido uma obra prima. Mas poucos são os que produzem obras primas, e, os que mais se vendem nem sempre são obras primas. Bons ou maus, os escritores passam todos pelo mesmo trabalho, as mesmas dúvidas, as mesmas angústias. E continuam todos a escrever.
Porquê escrever? Porquê, se o proveito é em geral magro, o reconhecimento inexistente, as humilhações mais frequentes do que as exaltações? Porquê escrever? Ah, essa é a questão. Porque o escritor não pode deixar de escrever, porque qualquer coisa dentro dele a isso o obriga.. Mas se a criatura um dia se revoltasse? Se decidisse um dia não escrever? Se todos os escritores um dia decidissem não escrever? Já pensaram o que isso significaria, o que resultaria dessa decisão? Os editores não editavam, as livrarias fechavam as portas. Mas sosseguem editoras, revisores, livrarias, fabricantes de impressoras, de tinta, de papel, não há perigo que isso suceda. Se há trabalhador que não fará greve, que nunca deixará de produzir, esse trabalhador é o escritor. E se a fizer, bom, se a fizer. Fran Lebowitz conta-o em Metropolitan Life* num capítulo intitulado “Escritores em greve”. Traduzo uns trechos.
“Os escritores unem-se. Decidem vingar-se da cidade. …. Entrarão em greve. ....... …. Mais ou menos ano e meio depois, as pessoas começam a notar que não há nada que ler. Primeiro reparam que os quiosques de jornais estão vazios. Depois a coisa é comentada nos noticiários da televisão. .......O público começa a ficar irritado, as pessoas exigem que a cidade tome providências. ............ A situação está-se tornando desesperada. Nas estações de camionagem do país, vêem-se os adultos jogando aos jacks. ….. velhos exemplares da revista People são leiloados por preços exorbitantes. ............Um grupo, possuidor de números antigos do The New Yorker, forma um sindicato. Abre um Bar de Leitura estritamente reservado a sócios”.
Finalmente os escritores grevistas perdoam. E com que gosto. Já estão cansados de não escrever. Um escritor não sabe fazer greve.
*Lebowitz, Fran Metropolitan Life . Arrow Books

O que dizem outros
– Por que você escreve?
Patrícia Reis – Ora, porque posso. Escrevo porque posso contar histórias que me passam pela cabeça. Porque existe essa possibilidade em minha vida. Eu poderia ser caixa de hipermercado e passar o dia a ouvir ‘pim, pim, pim’ da máquina registadora. Nós escrevemos para que gostem de nós, para encontrar no outro um eco qualquer de nossas ideias. No dia em que a escrita subir à cabeça e me fizer uma pior mãe ou uma pior mulher, eu deixo de escrever. Não tenho aquele discurso: ‘não consigo viver sem escrever’.*
*Blogue Click(IN)VERSOS
Margaret Atwood, autora canadiana, colacionou uma lista daquilo que diferentes autores responderam à pergunta do ‘porquê?’ da sua escrita: “To please myself. To express myself. To express myself beautifully. To create a perfect work of Art. To reward the virtuous and punish the guilty; or – the Marquis de Sade defense, used by ironists – vice versa. To hold a mirror up to Nature. To hold a mirror up to the reader. To paint a portrait of society and life. To name the hither unnamed”* São duas páginas de razões para explicar o inesplicável.
* Atwood,Margaret Negotiating the Dead. A Writer on Writing

Das cartas à minha filha
(Quarta feira, 2 de Fevereiro, 2005)
“Esta manhã li no LIRE, revista literária bem feita, uma reportagem sobre os Tics e Tocs dos escritores, e pasmo, desde o papel azul da Colette à pena de pato de não sei quem. Deu-me para reflectir se tenho também eu algumas dessas manias. Conclusão, gosto de trabalhar sem ser interrompida e, recentemente, estou a gostar de escrever com música – clássica – e a única excentricidade que me parece que tenho, é gostar de ter um globo em cima da mesa. Não por estética, mas porque me ajuda a pensar, ou a distrair quando não vejo o caminho aberto. Também gosto de começar a minha sessão de escrita por uma pequena coisa que não me obrigue a puxar pela cabeça. Como escrever para si. Amanhã continuo

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