7. Morreu Soljenitzyne

>> segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Morreu Alexandre Soljenytzine. A propósito da sua morte li no Público, em artigo do fundo, que o seu Gulag é, em parte, um “romance seminal”. Fiquei perplexa. Romance? Seminal? Procurei o sentido da palavra. Leio: seminal, adj. relativo a semente ou a sémen, figº. produtivo. Portanto o “Arquipélago Gulag”, nos seus três enormes volumes de reportagens sobre os campos de exterminação da Sibéria, é, na opinião do autor do dito artigo, em parte, “romance produtivo” . Produtivo talvez fosse, mas por pouco tempo. O que lá se relata depressa foi esquecido. De “romance” é que não tem nada.
Romance é o “Pavilhão dos Cancerosos”, romance é “Um dia na Vida de Ivan Denisovitch”, romance é “O Primeiro Círculo”, com o inesquecível “julgamento do príncipe Igor”, pastiche de um julgamento estaliniano. Esse sim, um romance. O seu melhor, na minha opinião, e um dos melhores que jamais li.
Romance é ainda La Roue Rouge?*, aquela que o autor pretendia viesse a ser a sua obra máxima. É o mais difícil dos seus livros, não pela prosa, que essa nunca é difícil ou arrevesada, mas por ser tão vasta a narrativa, que mesmo Soljenitzyn parece perder-se nela. Não é um livro em vários tomos, são livros dentro de livros, e uns de maior qualidade que outros. Para o meu gosto, as melhores partes são o “Segundo Nó. Novembro 16” - a guerra nos lagos Masuros – e, o “Terceiro Nó”, segundo parte”, com a vitória bolchevique e as suas horríveis mortandades.
O “Arquipélago Goulag” não é romance, assim como não é romance “Le Chêne et le Veau”, (creio que não o há em português), o livro em que Soljenitzyn narra a luta para a publicação do Ivan Denisovich. O livro consegue ser tão palpitante de interesse como o mais palpitante dos romances, apesar de não tratar de mais do que isso: a luta de um homem para publicar um seu pequeno livro. E de um editor – Twardowski – que gostaria de o publicar e não pode, e que finalmente o consegue. Lê-se na capa da obra (em francês nas Èditions du Seuil) e traduzo: ”estas memórias não são unicamente uma crónica de vida literária oficial e clandestina na URSS depois de Estaline, elas lêem-se como um romance autobiográfico do próprio escritor, rodeado de personagens como Tvardowsky, Kroutchev, Rostropovitch, Chafarevitch entre cem outros. Acabam com a prisão e a expulsão do autor em Fevereiro de 1974, um mês após a publicação em Paris do 1º volume do Arquipélago do Goulag”.
Morreu um muito grande escritor.

*Alexandre Soljénitsyne, La Roue Rouge, récits en segments de durée. Ouvrage publié avec le concours du Centre National de Lettres, FAYARD

-----“Antes de ser preso eu não percebia grande coisa disso. Inclinava-me para a literatura sem pensar, não sabendo bem que sentido tinha para mim e que sentido para a literatura. Só uma coisa me assustava, a dificuldade que decerto haveria em encontrar temas novos. É terrível pensar o escritor que eu teria sido ( e escritor teria sido) se não tivesse sido preso. Mas uma vez preso, e passados dois anos de prisão e de campo, vendo-me sob uma avalanche de temas, aceitei, como aceitava a minha respiração, compreendi, como a coisa menos contestável que meus olhos viam, que ninguém me editaria e que uma linha me custaria a cabeça.” *
*”tradº de “Le Chêne et le Veau” pg.9

----“Como se chega ao misterioso arquipélago? De hora a hora partem para lá aviões, navios, comboios, mas não há uma única inscrição indicando o seu destino” *
*tradº de “Der Archipel Gulag” I. Bd, S.15 Scherz

----“Ele dissera: – ensaísta - , envergonhado de confessar o fundo do seu pensamento: - escritor - . Para um ouvido não literário como o do coronel, que não lia jornais ou revistas, nem livros, provavelmente, e nunca ouvira falar de Fiodor Kovyniov, a palavra soareria comicamente, demasiado inchada de pretensão.”*
*tradº de “La Roue Rouge” pg 188

----“ De resto é regra geral que toda a convicção íntima perde a ser formulada, enunciada, exposta, em voz alta, e que só se transmite fielmente aos próximos e a meia voz.”*
*tradº de “La Roue Rouge” pg 319

---- “Se, ao falarmos de alguém, prevenirmos -Mas ele é de direita!-, de imediato -Ah, é de direita? - toda a gente tem um movimento de recuo. E para esse acabou-se de viver, acabou-se de comunicar com outros e de exprimir as suas opiniões. Como se fosse possível que toda a gente renuncie à sua mão direita ou só compre luvas esquerdas.
..... .Andozerskaia tomou coragem. No seu meio universitário, vive sob o jugo permanente desse interdito que atinge as ideias que a sociedade julga indesejáveis. Como ela escolhe cada expressão, como ela se esconde atrás do incompleto e do indirecto.”*
*tradº de “La Roue Rouge” pg 359

Das cartas à minha filha
“.....Mudando de rumo. Estou a ler os livros de Soljenytzine sobre a revolução de 1917. Tenho pena que a obra não seja em dez volumes, em vez de ser em quatro gigantescos livros. Note que não são pesados - então é que seriam impossíveis de ler - são é gordos de mais. Mesmo assim estou a ler, é interessantíssimo. Vou anotando sempre os nomes, já se vê, para na continuação poder verificar o que se disse deles quando apareceram em cena. .....
Não é livro para se ler muito depressa, mas que grande escritor que ele é, tanto na descrição das personagens, como dos sentimento e de paisagens e acontecimentos, neste momento a campanha da Prússia Oriental em 1916. (Que eu conheço da história alemã ) Talvez copie e lhe mande um pequeno parágrafo em que ele descreve o problema do adormecer quando se está preocupado. Até amanhã”.

Observações à margem
Um primo meu, alemão com uma longíncua ascendência portuguesa, prisioneiro de guerra na Rússia, que todos julgávamos morto há anos, foi libertado de um dos campos do Goulag na era Kroutchew. Veio a Portugal, e jantou em minha casa com uns amigos. Não se ia falar no que ele passara, e não se falou. Mas um dos presentes não resistiu, e a dada altura fez-lhe esta extraordinária pergunta:
--C´est joli, la Sibérie? --É bonita a Sibéria?-
--Mais c’est un continent!. --Mas é um continente!-- respondeu o outro, pasmado.

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