De bibliotecas

>> segunda-feira, 12 de janeiro de 2009





20. A biblioteca de Hartmann Schedel
Os bibliófilos conhecem o nome de Hartmann Schedel pela sua “Crónica Nuerembergensis”, publicada pela primeira vez em 1493. O impressor foi Anton Koberger e os primeiros exemplares sairam a 14 de julho desse ano. Com as suas 1809 gravuras, é a obra mais ilustrada dos primórdios da impressão. Das gravuras têm especial valor as vistas de cidades, sobretudo de alemãs, mas também de algumas das mais importantes cidades da Europa. Entre elas há uma do Porto, talvez um pouco fantasiada, mas curiosa. Vê-se qualquer coisa, que parece grade ou rede atravessando o rio, como que a fechá-lo naquele local. É questão à parte, para especialistas em história do Porto. O que torna Hartmann Schedel atraente para o amador de livros, é a extraordinária biblioteca que ele constituiu, e a forma como o fez.
Cada biblioteca nasceu e cresceu da sua maneira, tanto as públicas como as privadas. É uma verdade de La Palisse, que não deixa de ser pertinente. As bibliotecas particulares são um espelho do seu criador ou da sua criadora, outra verdade conhecida . Que no passado não foram sempre as bibliotecas dos soberanos e dos príncipes as melhores e maiores, é que talvez nem todos saibam. O riquíssimo D. Manuel I, tinha à data da sua morte, em 1521, cerca de 49 livros. Os duques de Borgonha eram mais dados a livros, em 1467 possuíam uma biblioteca de 900 obras. Por esses anos a biblioteca de Hartmann Schedel, modesto médico de Nueremberga, tinha quase tantas.
Schedel herdou algumas obras, comprou muitas aos copistas e depois aos primeiros impressores, encomendou algumas obras em Itália, mas uma parte da sua biblioteca é constituída por livros que ele próprio copiou. Mesmo depois da invenção dessa arte, os livros impressos eram caros, e os impressores nem de longe conseguiam cobrir a procura dos amadores. Estes copiavam então - tal como aliás até ali o tinham feito - os livros que lhes interessavam. Na cidade de Augsburg (Augusta) havia um grupo de homens, que se reunia para escrever para seu próprio uso - provavelmente sob o ditado de um dos membros do grupo - os livros que os outros tinham, e eles não. Um primo de Hartmann Schedel pertencia a esse grupo, e forneceu-lhe algumas cópias de livros do seu grupo. As bibliotecas dos mosteiros eram ricas, os monges eram os grandes depositários da literatura latina e grega. O doutor Hartmann Schedel pedia licença aos abades para copiar, copiava. Livros de poetas e pensadores gregos e latinos, livros de medicina, de ciência, outros. Copiava.
.O médico tinha de ser astrólogo, da astrologia passava-se à astronomia. Em 1469, Hartmann Schedel inicia a cópia e a aquisição de tratados de astronomia e astrologia. No seu catálogo encontram-se umas trinta e cinco obras relacionadas com o assunto.
O tópico máximo da época era a terra como esfera, e a possibilidade da sua circum-navegação. Numa das margens do seu exemplar da "Ásia" de Eaneas Sylvius Picolomini (o futuro Papa Pio II), publicado em Veneza em 1477, Schedel escreveu a pergunta que ocupava toda a gente culta do tempo: "An terra circumnavigari posit?" "Poder-se-há circum-navegar a terra?"*
E que instrumentos se necessitariam para o efeito? Vários livros tratam desse apaixonante tema:
--Tractatis de astrolabio et -Spere solide et Turketum.
--Tractatus Spere cum figuris Euclidis;
--Astronomicon Iginii. Alcabicius cum commento. Abraham judeus de nativitatibus. Composicio astrolabii. Repertorium de mutatione aeris.
--Astrolabium Messahali cum figuris quadrans profacii judei, de Turketo. Chilindro etc.
--Descripio Astrolabii. Julius Firmicus. Astrologia Arati. Geometria Euclides per Boethium traducta .etc.
E por fim temos uma obra que Schedel regista como: “Astrolabium planum in tabulis. Algorismos. Computus. Tractatus de Spera Jo(annis) de Sacrobosco. Liber quadrantis. Astrolabium".
Trata-se sem dúvida do livro que veio a ser conhecido em Portugal por "REGIMENTO DO ESTROLÁBIO E DO QUADRANTE. TRACTADO DA SPERA DO MUNDO”, e com o registo desta obra na sua biblioteca, Hartman Schedel passa a ser um dos protagonistas do enigma histórico-literário que podemos designar por “Caso dos Guias Náuticos”.
O caso surgiu em 1865 quando um jornal de Évora publicou o texto da carta de um tal Jerónimo Muenzer, alemão, dirigira a D.João II no ano de 1493. Em 1883 o doutor Luciano Cordeiro dava a conhecer o livro onde vinha a dita carta. Ficou-se a saber que o referido livro - pertencente à biblioteca de Évora - continha, além da carta de Muenster, umas tábuas náuticas, um resumo do “Tratado da Esfera” de Sacrobosco e um “Regimento do Astrolábio e do Quadrante”, tudo em português.
Em 1890 um matemático alemão revelava a existência na Biblioteca Real de Munique de uma obra que parecia idêntica à de Évora. E, em 1914, o doutor Joaquim Bensaúde pegou no assunto e, comparando os dois livros, o de Évora e o de Munique constatou que tanto o exemplar de Évora como o de Munique continham a mesma tradução do “Tratado da Esfera” de Sacrobosco, e que em ambos os livros havia um “Regimento”, uma instrução para o uso do Astrolábio. A diferença era que o exemplar de Munique continha explicações minuciosas, nitidamente destinadas a navegadores novatos “da forma de calcular as latitudes pelo conhecimento da altura do sol” , e que a obra de Évora não continha essas informações, pelo que a última se destinava decerto a navegadores mais experientes. Os dois livros davam as latitudes de pontos já descobertos, mas enquanto o exemplar de Munique abrangia somente locais da costa africana atlântica até ao Equador, o de Évora abrangia já Java e as Molucas. O exemplar de Évora era portanto mais moderno que o de Munique, e era esse, o mais antigo , que devia ser estudado.
Foi o que o Dr. Joaquim Bensaúde fez, tendo publicado os seus estudos em várias obras. Seguiram-se estudos de outros investigadores, e, em 1998, entrei também eu para essa lista com um pequeno estudo sobre a possível proveniência e data do referido livro. Dá-se agora o caso de eu querer corrigir uma das afirmações que fiz no trabalho original - cujas conclusões não se modificam por isso - e acrescentar um novo dado, e lembrei-me de publicar essa versão revista e emendada na Net.
Não sei se haverá entre os possíveis leitores do meu ‘libri.librorum’ alguém que se interesse por um caso de investigação histórica e literária como o dos “Guias Náuticos”. É uma das incógnitas deste novo meio de comunicação. Mas basta haver um leitor interessado para já me considerar compensada. Decidi portanto divulgar aqui em PDF o dito estudo numa segunda ‘edição’.
Primeiro tenho de ver como isso se processa, pode demorar tempo. Avisarei logo que a coisa estiver feita.

*Stauber, Dr. Richard Die Schedelsche Bibliothek Herdersche Verlagsbuchhandlung 1908

2 comentários:

Anónimo 19 de janeiro de 2009 às 10:55  

Tapeçarias de "Pastorara" ??

Jens Finke 11 de maio de 2013 às 15:08  

Cara Theresa

Desculpe o meu português, pois não o sou, embora viva no Porto.

Estou metido, para já só pelo prazer mas talvez, eventualmente, também para publicação, num estudo - felizmente interminável! - sobre um atlas de cartas náuticas (portulanos) que parece ter sido produzido na Italia à volta de 1501, mas cuja geografia abrange várias décadas, tudo compilado a partir de cartas náuticas portuguesas.

O estudo implica, essencialmente, a (re)abordagem de quase todos os temas relacionados com os descobrimentos portugueses, pois aprendi logo no início que mesmo os melhores e mais credíveis autores sobre o assunto ás vezes atropelavam-se ou enganaram-se nos pormenores, ou deixaram os seus trabalhos a mercê de editores bastante menos cuidadosos. Em breve, a maior parte do meu estudo consiste em localizar e estudar as fontes primárias, sejam manuscritos, incunabulos, outros livros ou mapas, e sobre as mais variados temas: a navegação astronómica e a sua adopção, o cálculo de latitudes, a construção e as características de navios, correntes marítimas, bathymetria, cartografia, paleografia, geomagnetismo ... quase tudo ligado às expedições ainda mal conhecidas de quase todas os descobridores portugueses mas também espanhóis desde o Gil Eanes até o Cabral e João da Nova. Em suma, tenho o grande prazer de poder navegar em mares “barafundos”, sempre descobrindo coisas novas!

Entre as obras chave do estudo, os ditos regimentos de Munich e de Évora são fundamentais, assim como algumas versões posteriores destes textos, incluindo as edições do Reportorio dos Tempos produzidas (e parcialmente traduzidas) por Valentim Fernandes, cuja editio princeps, de 1518 - da biblioteca de Vila Viçosa - antecede o Regimento de Évora, pois contém as mesmas gravuras (que foram adquiridas, junto com os tipos, pelo impressor Galharde no mesmo ano or talvez no início de 1519). Igualmente apelativas são pelo menos tres edições do Reportorio dos Tempos produzidas após 1552, que trazem em anexo um pequeno texto que, embora muito baralhado, parece ser cópia de vários regimentos náuticos ainda mais antigos que os que contém o Regimento de Munich.

A aguardar a descoberta (nos meus sonhos?) da conjecturada primeira edição do Regimento de Munich, tenho de conformar-me entretanto com a existente. Assim, uma parte do meu estudo está dedicado precisamente à datação do Regimento de Munich, pois parece-me aleatório a data frequentemente assinalada de 1509, que parece derivar unicamente do facto de a obra mais velha conhecida de Herman de Campos tenha saída neste ano. Embora o tipo de letra do Regimento de Munich pareça apoiar a tese que saiu do prelo de Herman de Campos, não estou em nada convencido da suposta leitura do fragmento «pos», em tinta vermelha, da capa danificada, que supostamente fazia parte do nome «Campos». Simplesmente, o que se vê não parece ser «pos» (uma imagem está no facsimile de Bensaude; a outra, com os fragmentos da capa num arranjo ligeiramente diferente, em «As edições fac-similadas do Sr. J. Bensaúde» de Luciano Pereira da Silva - 1920; reeditada nas suas Obras Completas, II, http://purl.pt/16525/1/sa-25996-p/sa-25996-p_item1/P187.html). Assim, por mim, a questão do impressor e da data do regimento ficam em aberto.

Por isso, foi com muito interesse que encontrei ontem num catálogo dum alfarrabista aqui por perto, uma cópia do seu livro sobre o assunto. Fiz uma procura na internet, e acabei por encontrar o seu blog. Tenho de dizer que estou em pulgas a aguardar a segunda-feira para poder comprar o livro. Mas, claro, estou intrigado pelos informações adicionais que menciona no blog, e o seu desejo de publicar, em PDF, um segunda edição.

Se isto é ainda algo que queira fazer, gostarei muito de o poder ler! E se precisar de ajuda, terei gosto (e tenho tempo) para ajudar a fazer-lo.

Com os meus melhores cumprimentos,
Jens Finke
Antas, Porto.
(correio electrónico: o meu primeiro nome arroba bluegecko ponto org)

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