de bibliotecas

>> segunda-feira, 26 de janeiro de 2009


De bibliotecas
22. Os livros de Afonso de Torres

Talvez exista algum catálogo da biblioteca de português quinhentista ou seiscentista, mas se há não o conheço Para poder falar da biblioteca de um leitor seiscentista português recorro por isso a um documento intitulado: “Inventario dos bens que ficaram por morte do senhor Affonso de Torres Telles.............os quais foram avaliados por Pedro Lingues, juiz do ofício de livreiro”-
Ou seja, para efeito de partilhas, os livros que haviam sido do falecido Afonso de Torres, tinham sido inventariados e avaliados por Pedro Lingues, livreiro. Afonso de Torres era cabeça do morgado dos Torres, teve uma vida de aventuras e acabou os dias em Montemor, escrevendo uma obra de genealogia, que deixou ao morgado.
Os seus livros ficaram à filha mais velha, e por ela teve-os seu marido Francisco de Melo Torres. Este, um dos conjurados de 1640, que viria a ser o 1º conde da Ponte e Marquês de Sande, deixou nas ultimas páginas de um dos seus códices a anotação de algumas obras emprestadas nos anos de 1648/49 a amigos seus. Ao escrever a sua biografia – “A Vida do Marquês de Sande” - eu parti do princípio, que se tratava de aquisições do próprio Francisco de Melo, mas pude entretanto constatar, que parte dos livros que Melo anotara naquela ocasião, vinham da biblioteca que fora de seu sogro, Afonso de Torres.
A respeito desta anotação, e o que dela se podia concluir - para além do facto de Melo ter o mau hábito de emprestar livros - escrevi na dita biografia o seguinte : “Estava-se em 1649, em Inglaterra dera-se a revolução que levara Carlos I à morte. Aceitando a ideia que os problemas históricos do passado interessam os homens sobretudo pelo que iluminam dos problemas do seu próprio tempo, e cientes que os homens de Seiscentos ainda eram humanistas no sentido de procurarem a chave de todos os seus problemas nas obras dos antigos, é certamente significativo encontrar entre os mencionados livros emprestados por Melo, e portanto discutidos por ele e seus amigos, a "Republica" de Cícero, na qual um grupo de amigos discute as condições da vida política, a maneira de uma nação ser grande e forte, as causas da grandeza e prosperidade romana e os meios de atacar a sua decadência, e a "Pharsala" de Lucanio, poema épico de fundo filosófico, que canta a guerra civil e a luta entre Pompónio e César.” Lá está também a "Conservação da Monarquia", estudo de Pedro Fernandes Navarrete sobre os males de que enfermava a monarquia, e a maneira de os remediar. Através destes livros emprestados visualizam-se os leitores de então procurando o que teria levado à queda da monarquia em Inglaterra, ou ainda uma explicação àquilo de que sofria a sua própria pátria".
Tivesse eu lido a lista dos livros de Afonso de Torres, e saberia que já nos seus dias se discutiam as ideias que iriam ocupar os homens da Restauração. Mas a essa conclusão só cheguei agora, quando fiz o que então devia ter feito, ou seja estudar o inventário dos livros de Afonso de Torres. A verdade é que durante anos fugi de um documento, no qual se está praticamente face a uma adivinha, ou antes uma série de adivinhas, já que o avaliador dos livros tanto dá deles aquilo que se afigura ser um título, como aquilo que talvez seja o nome do autor, e que cada título, cada nome de autor pode estar, e em geral está, deturpado. O livreiro, que sabia do que falava, não se dava ao trabalho de especificar correctamente a obra, e menos em soletrar algum título mais difícil. Dizia um nome, ou um título, que para ele definiam perfeitamente de que obra se tratava, e indicava o valor em que a avaliava. O valor é que interessava. O escrivão que nada devia saber de livros, escrevia o que lhe parecia ter ouvido. Dessa forma surgem designações como esta: “Viagem Dermundo de sevalhos”.
Paulo Achmann, amigo bibliófilo, a quem pedi ajuda, e eu, procurámos cada um a seu modo, decifrar o que se escondia por detrás daquele dermundo.
Paulo foi por: ‘sevalhos’. “Chegar lá, escreve ele “não foi tão fácil como parece, porque sem o "Ordóñez" recusava-se a aparecer”
Eu preferi procurar por: ‘viagens em torno do mundo (dermundo)’ e, depois de aliciantes propostas de viagens de luxo em volta do mundo, também cheguei a bom porto. O livro é:
“Historia y viage del mundo del clerigo agradecido don Pedro Ordoñes de Zevallos … a las cinco partes de Europa, Asia, Africa, America y Magalanice. Contem 3 libros Vasconso, José ed. Juan Garcia imp. Madrid 1614
Pedro Ordoñes de Zevallos (1517 -1627), era natural de Jaen, fora soldado, corsário e mas tarde padre, passou, segundo afirma, 35 anos de sua vida viajando. “Nos dejo a sua vez libros cargados de aventuras, aunque principalmente dedicados as Americas”, escreve o autor da notícia.
O livro, e possivelmente o próprio autor, diriam alguma coisa a Afonso de Torres, já que os Torres eram de origem espanhola, gente que se instalara em Portugal depois da tomada de Granada, e era, tal como Pedro de Zevallos, oriunda de Jaen. Afonso de Torres também levara uma vida de aventuras, devia sentir afinidades com Zevallos. Talvez que o facto do livro ser o primeiro mencionado queira dizer qualquer coisa, quem sabe se não se encontrava à mão quando o livreiro iniciou o inventário. É obra que deve ter tido várias reedições, a estampa que reproduzo é o frontispício da edição de 1691.
Sobre a ordenação dos livros, só podemos concluir que não seguiam qualquer ordem, já que as ‘Viagens del mundo’ são seguidas de um Virgílio, este das ‘cartas do Japão’, estas da ‘Vida de D.Teotónio duque de Bragança’, e este da curiosa e ainda não decifrada: “Primeira parte del par nosso de ouvidio” por 180 rs
Paulo Achmann declarou-se derrotado: “Primeira parte del pai nosso de Ouvidio? Que diabo (releve-me a incontrolável linguagem blasfema) é que o Ovídio tem a ver com o Pai Nosso ? Ainda tentei o português Santo Ovídio, mas revelou-se isento deste delito literário. E o velho Ovídio nem nas Metamorfoses, nem na Ars Amatoria rezava o Padre Nosso ...”
E que fazer com o “Reis de abran Porteleyo Piqueno”? perguntei-me eu. Será Abraham Ortelius?
E o que dizer da “Historia do Principe Polosisisue”?
Espantou-me também a presença de tantos livros italianos naquela lista, até que recordei que Afonso era filho de João Rodrigues de Torres, e que este fora estudante em Pádua. Ainda existe o documento comprovativo da licença que lhe foi dada pela Signoria de Veneza.
“A 14 de fevereiro de 1567, o doge Petrus Lauredanus concede a João Rodrigues de Torres, gentil-homem português, estudante em Pádua, licença de porte de armas e autorização de manter no território da ‘Signoria’ dois criados a seu serviço”. (Vida do Marquês de Sande pg. 23 e nota). O problema dos livros italianos que figuram na lista dos livros de Afonso de Torres estava resolvido, tinham entrado ali pela mão de um estudante português em Pádua.
Não me quero adiantar em outras conclusões, primeiro há que terminar a decifração. O que procurarei fazer a pouco e pouco. Só quando isso estiver feito, se poderá fazer – e tentarei fazer - uma apreciação das leituras de um leitor seiscentista português, e deduzir se possível os interesses proeminentes do homem culto desse tempo.
A Paulo Achmann, que decifrou os primeiros vinte e cinco livros, não queria pedir mais ajuda, e eis que ele me escreve dando conta de novas descobertas, o que prova que ainda não abandonou. E não serei eu que o convide a desistir. Exemplo da sua colaboração é este mail:
“Penso ter resolvido o enigma do "Porteleyo Pequeno". Um portulano, como confirmei com o dicionário, tanto podia ser o códice com as cartas náuticas, como cada uma delas individualmente (são aquelas orientadas pelo norte magnético, com várias rosas dos ventos, e rumos que se entrecruzam sobre o mapa). Ora um desses códices, por pequeno que fosse, não podia valer uns miseráveis 200 rs. Tratar-se-ia certamente de um só mapa ...
---Reis de abran ?? ... abran ??... será o velho Abraão Ortélio ?? ... deixa cá ver o que é que há dele na Biblioteca Nacional ... BINGO !!! :
Abraham Ortelius - "Regni hispaniae post omnium editiones locupleitissima descriptio" (várias edições do séc. XVI e princípio de XVII).
O nosso amigo Lingues (que suspeito se chamaria "Línguas", não de apelido, mas de alcunha, por falar tantas e tão bem ) , com a sua proverbial competência, traduziu Reinos por Reis, e toca a andar ...
Fico ancioso pelos seus elogios. Paulo”
Minha resposta:
“Eu tinha pensado em Ortelius, mas não encontrava ligação entre Reys e Ortelius.. Mil parabéns agradecidos. Já não esperava que continuasse nesta tarefa, mas já que ‘insiste’, não sou eu que o vou dissuadir.”
Participo-lhe a que resolvi mais algumas charades. Entre outras
Nr. 96 – Historia de Mariana 500 rs
Juan de Mariana 1536 – 1623 jesuita, teólogo e historiador espanhol
“Historia general de Espanha” 1601
Nr. 220 – Adevertencia Italiano 20 rs
Deve ser Pedro Mantuano “Advertencias a la Historia de Juan de Mariana” Milano 1611, 2º ed. 1613
Observação à margem
Caso algum leitor esteja interessado em colaborar na decifração, terei muito gosto em lhe mandar uma cópia do inventário

6 comentários:

Anónimo 26 de janeiro de 2009 às 12:12  

Relativamente a "Primeira parte del par nosso de ouvidio", não poderá ser um "parnaso" onde constem escritos de Ovídio? Por exemplo, bem sei que mais de um século depois das datas possíveis para edição dos livros de Francsico de Mello e Torres, aparece um "parnaso de poeti classici di ogni nazione" em que o 2º tomo é precisamente, dedicado a Ovídio.

Theresa Castello Branco 26 de janeiro de 2009 às 12:42  

Resposta a Gonçalo da Cunha. Eu também pensei em "parnasso", mas sem resultado. Agora, vendo que houve um parnasso dedicado a Ouvidio, ou antes um Ouvidio no parnasso, vou procurar se houve alguma edição de fins dos sec. XV ou princípios de XVI. Transmitirei a sua sugestão ao desesperado Paulo Achmann. Agradeço muito a colaboração. Qualquer outra sugestão que queira dar será bem vinda. Será mesmo muito bem vinda. Theresa CºBº.

Anónimo 26 de janeiro de 2009 às 12:55  

Engraçada, esta sensação de ser citado como autoridade paleográfica ...
Aí vai novo palpite: o Principe Polosisiu (ou "Polosisisue", como escreveu no blog) deve ser o herói da "Historia famosa del Principe don Policisne de Boecia, ..." (Valladolid 1602), que o D. Quixote também leu de certeza.
Muitos parabens à perspicácia do comentador anterior, Gonçalo da Cunha, que me parece ter acertado em cheio. Procurei e encontrei: "Primera Parte del Parnaso Antartico de Obras Amatorias con las 21 Epistolas de Ovidio", Sevilla 1608. Bravo !!
Estou convencido de que, para além da linguagem críptica do Lingues, uma parte da dificuldade reside na interpretação da caligrafia do escrivão.
P. A.

Theresa Castello Branco 26 de janeiro de 2009 às 16:17  

Paulo. Paleógrafa fui eu, que copiei o original, com o cuidade de copiar mesmo o que me parecia disparate. O seu papel é bibliográfico, o que é bem mais importante. Eu consultara as "Lecturas caballerescas", sem encontrar o Poliscine. Indico aqui três novas soluções (de algumas outras, que irei indicar a pouco e pouco)
158 – Dialogo del Onores Italiano 80 rs
--Dialogo dell'honore di M. Gio Battista Posseuini mantovano nel quale si tratta con bell'ordine, dottamente, a pieno, & con molta chiarezza del duello della nobiltà de gradi d'honore. - Con tauole & postille in margine di nuouo ristampate & corretto. - In Venetia : [Francesco Sansovino], 1568 (In Venetia : per Francesco Sansovino, 1568). - [20], 350, [2] c. ; 8º. ((A cura di Antonio Possevino il vecchio, il cui nome appare nell pref. - Marche sul front. e in fine. - Cors. ; rom. - Segn.: a-e8A-2X8. - Iniziali e fregi xil
Autore secondario: Possevino, Antonio <1534ca.-1611>
Editore: Sansovino, Francesco
Città di edizione: VENEZIA

206 -- Vegetius, Renatus Flavius De re militar
É uma colecção de tratados por vezes designados por “scriptores rei militares” (Informação de Smithsonian Inst)
Teve várias edições. A primeira é de 1494

214 – El pastor fido Italiano 40 rs
-------- Guarini, Giovani Battista Il pastor fide
professor de eloquência em Pádua de onde em 1567 passou para o serviço de Afonso II, duque d’Este, Guarini é recordado sobretudo pelo seu “Il pastor fide” drama pastoril representado pela 1ª vez em 1590 em Pádua
Humanista no ensino como prova o seu “De Ordine Docende” ditigido aos estudantes. Era contra o velho mecanismo escolástico, favorecia o repouso e os jogos , ao contrario dos métodos ríspidos do ensino meieval. Defendia a importância da retórica, da dialéctica e do contacto directo com os autores clássicos.
Deve ser por isso que temos tantos Ciceros, Virgílius, Lucanos etc. Eram decerto do estudante João Rodrigues de Torres.Theresa

Anónimo 27 de janeiro de 2009 às 18:03  

Penso que, finalmente, conseguirei voltar a mandar comentários...Não estou segura, porém.
Consigo, Thresa, aprendo sempre e por isso leio com muito interesse todas as suas intervenções. Mas deixe-me que destaque "Promover Livros" onde encontrei aquele humor tão seu característico com o qual tomei pela primeira vez contacto quando nos deu o przer de ir a uma sessão do Clube de Leitura. Por altura do Natal recuei consigo ao meu Natal de criança...com tantos pontos em comum. até os Contos de Grimm de que também tenho uma edição grossa de capa amarela, em Alemão, e em letra gótica. Bem haja, Theresa!
Olga

Theresa Castello Branco 27 de janeiro de 2009 às 19:52  

Olga, que bom ter encontrado o caminho. Esta coisa de blogues tem que se lhe diga, mas quando se acerta é divertido. Eu vou alternando o mais sério com o menos, para não cansar os leitores. Um abraço Theresa

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