Duas ilhas e um queijo flamengo

>> segunda-feira, 20 de julho de 2009



DUAS ILHAS
Prometi voltar ao caso dos livros em ilha deserta, e ao comentário de JPC a esse respeito e aqui estou a cumprir a promessa. JPC escreveu que a forma literal como eu desenvolvera o problema, era errada: “este é daqueles casos que não devem ser entendidos literalmente”, escreveu ele. “A metáfora da ilha deserta é um mero pretexto, a ilha é uma abstracção que dispensa concretizações.”
A minha primeira reacção foi que JPC tinha razão, que, de facto, era dessa forma, como metáfora, que a questão era posta e devia ser tratada. Mas porque seria então que, por mais que me esforçasse, eu não conseguia pensar o caso dessa forma? Porque seria que eu, teimosamente, via e vejo na minha imaginação uma ilha, e uma ilha paradisíaca diante de mim quando me põem a pergunta ? Ilha em mar azul, com altas palmeiras, estreita orla de areia branca? E porque é que eu, ao pensar nos livros que levaria, penso em coisas concretas, práticas, livros bons, evidentemente, mas que também “dessem” para muito tempo?. Porque é que eu, teria querido pôr um pequeno Larousse na lista, e até algum livro que me desse ideias sobre o aproveitamento dos recursos da ilha?
Em resumo, porque é que eu não conseguia ver o problema em abstracto? Porque é que eu achava que a ilha tinha de ser assim, quando JPC achava que a ilha tinha de ser assado, e isso também me parecia compreensível? Estávamos sinceros, um e outro.
Estaria essa radical diferença na forma diferente de mulher e homem encararem problemas? Consultei Gina Lombroso, o meu papa em material de psicologia feminina, e parece-me ter encontrado a explicação. No seu livro, ‘A Alma da mulher’, Gina Lombroso escreve que a imaginação da mulher é “involuntária, intuitiva, inconsciente e instantânea” e que, no caso do homem, “mesmo que o seu ponto de partida seja exterior, tem o seu ponto de chegada no mundo interior, no mundo das ideias”.
O que explicaria que JPC imagine a ilha como uma metáfora, que para ele a ilha seja “uma abstracção que dispensa concretizações” e que eu, ao ouvir ‘ilha’, ‘veja’ inconscientemente, imediatamente, uma ilha concreta diante de mim.
Creio que outra mulher a quem façam a pergunta - a não ser que seja uma mulher com inteligência masculina - também pensará de imediato numa ilha real e não numa metáfora.


UM QUEIJO FLAMENGO
Gina Lombroso fala também na associação de ideias igualmente espontâneas e pouco reflectida, como uma das características da mulher. e eu sou prova disso, que passei da ilha idílica e deserta para os Robinsons. e destes para outros casos marítimos, como naufrágios e incidentes a eles ligados. O que me levou à releitura da ‘História Trágico Marítima’ com a sua colecção de relatos de naufrágios.
Li o livro pela primeira vez quando estava pensando escrever sobre a aventura portuguesa na Índia. Ainda não tinha o tema certo, procurava-o, lia aquilo que sabia ser boa fonte. Como tal, li a Historia Trágico Marítima. Mas de forma crítica. Olhei o assunto na sua generalidade. Lembro-me que notei em particular as provas de sobrecarga dos navios com os seus trágicos resultados, e que me interessaram mais as narrativos dos percursos dos náufragos, uma vez chegados a terra firme, do que os relatos dos naufrágios em si.
Percorrendo agora o livro com outro propósito, dei mais valor aos pequenos pormenores, preferi saber como os náufragos se abrigavam, vi diante de mim as choupanas feitas de tapetes de Oriente, vi as cadeirinhas e mesas doiradas que o mar trazia à praia. Interessei-me pela presença das mulheres, e suas atitudes. Fascinaram-me os casos de habilidade, os estratagemas, dos naufragos.
Quando do naufrágio da nau Santiago em 1585, o batel de salvação avariou-se, perdeu parte da popa. “de tábuas de caixões, calafetadas com camisas, com uma ponta de laca e queijo de framengos fizeram a popa, e com o mesmo pau e queijo calafetaram muita parte dela porque estava mal”.
Dos três volumes da Historia Trágico Marítima muito esqueci, mas não me esqueço do queijo dos flamengos a servir para calafetar.
Para o caso de haver alguém que não leu a Historia Trágico Marítima, aqui seguem uns pequenos extratos das suas narrativas.

HISTORIA TRÁGICO MARITIMA compilada por Bernardo Gomes de Brito
”A nau......além de vir por baixo das cobertas toda maçissa com fazenda, trazia no convés setenta caixas de marca e cinco pipas d’água a cavalete, e se tirou tanta multidão de caixões e fardagem, que altura destas coisas igualara o convés com os castelos e chapitéus”T- I-50

“......havendo este por melhor conselho, começaram logo com muita presteza a despejar o convés de quanto trazia sobre as tilhas, de modo que em muito pouco espaço foi o mar todo coberto de infinitas riquezas, lançadas as mais delas por seus próprios donos, de quem eram em aquele tempo tão aborrecidas como já em outra tão amadas, e assim alijámos a maior parte da água que vinha em cima e todas as outras coisas que mais achávamos à mão e mais estorvo faziam à mareação...” T- I-51

“ Neste mesmo dia abriu a nau pelo costado, e a modo de parto lançou de si o batel com um terço menos; lançaram-no as águas para o mais baixo do recife, e encalhou três tiros de espingarda da nau.” T-II-177 Nau Santiago

“---determinaram-se muito a propósito do concerto do batel, e de tábuas de caixões, calafetadas com camisas, com uma ponta de laca e queijo de framengos fizeram a popa e com o mesmo pau e queijo calafetaram muita parte dela porque estava mal. Deram-lhe também cinco ou seis arrochos de cabos de arrestadores de mastro e nem assim bastava para vedar a água...........depois que se fez viagem sempre houve quatro gamotes (vasilha de madeira) vivos, revezando-se a ela todos que estavam para isso...” T-II-177 Nau Santiago

“... o piloto e outros elegeram , todos de comum consentimento para seu capitão (do batel de salvamento) a Duarte de Melo, fidalgo digno por certo de outras maiores honras....” T- II-177 Nau Santiago

“ Neste tempo que ali saímos em terra logo começámos a cavar, a ver se podíamos achar alguma água”. Descobriram terra molhada e alguma agua mas parecia purga. Mesmo assim “não a enjeitámos e por a gente ser muita não vinha a cada um mais que um búziozinho dela” T-I-143


“A nossa choupana que nestes baixos tínhamos (Baixo dos Banhosa noroeste das Maldivas)em que nos recolhíamos eram de panos e de aduelas de pipas e cobertas com panos de todas as sortes e sedas que o mar lançou fora, e assim nos recolhíamos de seis em seis pessoas, assim altos como baixos e as choupanas que tínhamos eram cinquenta e seis” T-I-143

“Quem cuidara que cento e sessenta e seis pessoas se podiam sustentar cinco meses em uma praia de areia de 300 passos de comprido e 160 de largo sem outro mantimento senão o que Deus nos mostrava? ..........E algum dia que a barquinha (de pesca) não podia ir ao mar, logo Nosso Senhor dele nos lançava mantimento, que era lobo ou tartaruga......que vinham desovar à terra e cada uma tinha muita soma de ovos; uns deles tinham a clara propriamente como as das galinhas e outros, mais pequenos, sem claras que pareciam gemas de ovos, e os que tinham claras, tinham pele por casca como propriamente pergaminho............. uma vez tomámos uma e contámos-lhe os ovos e achámos 1836...............e às vezes pela manhã as achávamos cavando na terra com as mãos e fazendo cova para porem os ovos, e os punham em altura de uma vara de medir, e calcavam-nos muito com a terra e depois se tornavam para o mar, e delas saiam as tartarugas pequenas, e nascidas, logo iam em busca do mar sua natureza, e não saíam gora senão quando o mar e tempo andavam tempestuosos”
T-I- 153

“Pela noite, porque havia luar, foram três marinheiros correr a praia com esperança da tormenta passada, e acharam na boca do rio um tubarão lançado à costa, e que repartiram entre si e cada dois dedos de posta nos venderam por quinze e vinte cruzados, e a falta de outro mantimento fazia tanta sobejidão de compradores que depois do corpo ser todo levado a este prelo não faltava quem desse pela metade da cabeça vinte mil reis, de sorte que bem se pudera comprar nesta terra muito arrazoada quinta com o que aquele peixe rendeu” T-I-88

“Tanto que amanheceu, olhámos para o mar se víamos o batel grande ou o esquife e nenhum vimos, assim que na noite passada se foram sem nos deixaram nenhum remédio, que foi outro segundo pranto então,..... ordenámos pôr regra sobre nossas vidas........ Pelo que demos ordem em fazer logo capitão a quem déssemos obediência, e foi eleito D. Álvaro de Ataíde, sobrinho do conde de Castanheira, homem mancebo de vinte anos, de boa condição e amigo de todos, mas não era para o cargo que lhe demos por não ser temido e ser juntamente mancebo” T-I- 141

2 comentários:

JPC 21 de julho de 2009 às 02:19  

Ora aí está uma interpretação que não me teria passado pela cabeça. Pois, pode muito bem ser, homens e mulheres, é possível. Não deve ser por acaso que há muitos mais homens filósofos, por exemplo, devemos ser mais dados ao pensamento abstracto, aos simbolismos e às metáforas. Também é uma questão de acesso, naturalmente, à educação, e à cultura, que durante séculos foi domínio masculino. Mas mesmo depois de quebradas barreiras, em pleno século XX, não há assim muitas "pensadoras", filósofas ou ensaístas. Estarei a ser injusto ou ignorante, certamente, mas de repente só me lembro da Hannah Arendt.

E também tenho a impressão que as mulheres até preferem carreiras académicas ou científicas menos teóricas, assim como as medicinas ou as biologias. Seja como for, existe de facto essa noção popular de que os homens vivem mais no mundo das ideias. Associada a esta há outros conceitos popularizados, como o de que os homens têm mais propensão para o pensamento estratégico, e as mulheres para o pensamento táctico.

Não sei se será bem assim. O que sei, por exemplo, é que penso nisso de cada vez (que são todas) que a minha mulher só se lembra das chaves do carro quando chega à porta do veículo e fica ali minutos a revolver as entranhas da típica e misteriosa sacola feminina sem fundo, à procura da chave. É um comportamento que noto ser comum a muitas mulheres. Ao passo que todos os homens que conheço antecipam a situação e já levam a chave na mão muito antes de chegar ao carro...

Já agora, há uns posts atrás falámos de Ficção Científica. A este propósito, gostava de partilhar consigo uma excelente reflexão sobre literatura de género e literatura "séria", em forma de pequeno ensaio publicado num recente número do New York Times. Carlos Rotella, director do departamento de Estudos Americanos da Boston College, escreve a propósito um dos expoentes contemporâneos da FC norte-americana, Jack Vance. Vale a pena leitura atenta:

http://www.nytimes.com/2009/07/19/magazine/19Vance-t.html

Theresa Castello Branco 21 de julho de 2009 às 18:32  

Ainda bem que me fiz compreender. É claro que não é por acaso que há muito mais homens filósofos do que mulheres, é claro que, apesar de todas as barreiras ultrapassadas, em pleno século XX, não há verdadeiramente pensadoras, filósofas ou ensaístas, e não está a fazer injustiças às mulheres dizendo que estas preferem carreiras académicas mais práticas que teóricas. Ignorava que se dizia que “os homens têm mais propensão para o pensamento estratégico, e as mulheres para o pensamento táctico”, mas também me parece evidente. A nova abertura permitiu às mulheres revelarem as suas capacidades nos mais variados campos, mas não mudou o seu íntimo. Uma mulher pode perceber e apreciar uma obra filosófica, mas não está dentro do seu espírito prático, da sua forma de inteligência concreta, seguir um fio de pensamento totalmente abstracto de forma a compor uma obra de filosofia.
E onde estão as grandes compositoras e dramaturgas? Gina Lombrosa escreve a esse respeito que a mulher tem paixão pela musica, e grande talento para o diálogo, mas que, apesar disso, há muito poucas mulheres compositoras ou dramaturgas. Muito menos que mulheres letradas ou mulheres pintoras. É que a pintura, o romance e a poesia têm uma técnica fácil, escreve ela: “se fosse possível fixar a música tão facilmente e tão rapidamente como a pintura e a poesia, a mulher comporia, mas a transcrição do procedimento gela o sua pensamento, assim como a gelam os limites e a técnica necessária à dramaturgia”.
Está à vista que as feministas odeiam esta autora tão verdadeiramente feminina.
Chave do carro na mão? Uma mulher? Que ideia é essa? Entre fechar a porta da casa e chegar ao carro, a mulher tem tempo de pensar em mil e uma coisas. Terá fechado aquela torneira? Não terá esquecido a lista das compras? Olha, afinal está mais calor do que parecia, podia ter vestido coisa mais leve. Ah, é verdade, a chave!
Obrigada pela sugestão de leitura. Theresa

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