Quem vai na jangada?

>> segunda-feira, 13 de julho de 2009



O post anterior foi sobre ‘livros em ilha deserta’. Fi-lo de forma literal, o que, como comentou JPC, era errado: “este é daqueles casos que não devem ser entendidos literalmente”, escreveu ele. “A metáfora da ilha deserta é um mero pretexto, a ilha é uma abstracção que dispensa concretizações.”
JPC talvez tenha razão, e talvez não, um dia volto ao problema. Entretanto, e porque assunto puxa assunto, este post mantém o rumo e trata de outra questão ligada à vida marítima.
Esbarrei pela primeira vez com o problema ao ler o relato do naufrágio da ‘Flor da la Mar’, o navio em que Afonso de Albuquerque regressava de Malaca. Diante de Pedir a frota foi apanhada por um forte temporal, e na ‘Flor de la Mar’ as bombas não davam conta da agua que entrava. Percebendo que a nau estava perdida, Afonso de Albuquerque mandou construir uma jangada com os mastros. A jangada foi lançada ao mar, Afonso de Albuquerque passou para ela e mandou passar os portugueses que seguiam a bordo. Quanto aos outros, a sua sorte foi diferente: “O governador não consentiu na jangada nenhum negro nem negra, que todos deitou ao mar”, escreve Gaspar Correia em as ‘Lendas da Índia’.
Negros, ou seja, naquele caso, gente de raça malabar, era a gente mais insignificante da tripulação, e era essa que se sacrificava em semelhantes circunstâncias. Não tenho duvida que se ‘negros’ não houvesse, Afonso de Albuquerque teria lançado ao mar sem hesitação outros tripulantes de qualquer cor que fossem. Sem que isso lhe causasse problemas de consciência, e fazendo-o pessoalmente, o que nem todos os comandantes seriam capazes de fazer. Ou para melhor dizer, o que nenhum outro capitão jamais fez.
O caso da jangada da ‘Flor de la Mar’ é o primeiro dessa natureza referido na era dos descobrimentos. Houve muitos outros. Testemunham-no as narrativas dos naufrágios de naus da carreira da Índia coleccionadas na ‘História Trágico Marítima’ *.
Encontra-se de tudo nesses relatos. Desde a origem e razão do naufrágio da nau em questão, aos salvamentos de alguns e perda de outros, ao primeiro refúgio em ilha ou terra firme desconhecidas, às primeiras medidas tomadas pelos sobreviventes, à escolha de quem os dirigiria, à regra que se seguiria etc. E não faltam os problemas de consciência. Entre eles, aquele de que acima escrevi: o destino dado a quem estava a mais na jangada de salvamento. E quem diz jangada, diz outra qualquer pequena embarcação, em geral o batel que cada nau levava consigo, e que nunca chegava para todos os tripulantes.
Os textos que se seguem, extraídos de dois desses relatos parecem-me elucidativos:

“NAUFRÁGIO DA NAU SANTIAGO no ano de 1585 e itinerário da gente que dela se salvou, escrita por Manuel Godinho Cardoso..”

“.........Ao outro dia pela manhã, que foi sexta-feira, 23 do mês, estando os do batel para se partir, pareceu ao piloto em sua consciência e ao contra-mestre e a alguns homens do mar, comunicando primeiro com o capitão Duarte de Melo, que o dito batel não estava para poder navegar com tanta gente e que, como tivesse mais de quarenta e seis ou quarenta e sete pessoas, que não se atrevia a navegar, e, mandando-se contar a gente que nele estava por António Gonçalves, guardião da nau, que era muito bom homem e muito bem inclinado e dizia que não chegava a quarenta a quantia da gente àquela com que o piloto se atrevia a navegar. E, todavia, parecendo a algumas pessoas que se tinham apoderado do batel, que o guardião não contara bem a gente, por o batel estar pesado, assentaram entre si que lançassem ao mar algumas pessoas; e eles somente consultavam e determinavam quais haviam de ser estes condenados. Os desta parcialidade deram conta a Duarte de Melo do que o piloto dizia e da diligência que se mandara fazer pelo guardião; e mostrando Duarte Melo, capitão, muito sentimento cristão, não sabendo como se pudesse escusar a execração (sic) de tão cruel obra, mandou ver a quatro ou cinco pessoas a gente que no batel estava. Levaram as espadas nuas nas mãos para assim mais facilmente poderem executar as sentenças e miseráveis sortes dos condenados. Lançaram fora do batel dezassete pessoas, ............ Em se determinando que fosse ao mar fuão, o botavam logo os executores...................... Nestas execuções que se fizeram não se intrometeu nenhum dos religiosos que no batel iam, vendo o decreto do capitão e dos mais da sua parcialidade, posto que muito o sentissem, por ser negócio muito alheio de suas profissões. E deviam os do conselho entender bem isto, porque a nenhum propósito falaram nesta matéria com os religiosos”.

“NAUFRÁGIO DA NAU SÃO TOMÉ, na terra dos Fumos, no ano de 1589 (narrado por Diogo de Couto. T. II 234 ss)
“...........Ao outro dia, tanto que amanheceu, não viram terra e lançaram o batel ao mar com muito trabalho, porque, indo no ar sobre os aparelhos, se lançavam os homens a ele como doidos, sem D.Paulo de Lima, que se tinha metido dentro com uma espada na mão, lhe poder valer, porque se quis segurar dos marinheiros, que se não fossem nele e o deixassem. E sem embargo de cutiladas e crisadas, que se deram em muitos, mui despiedosamente, não deixou de se lançar nele tanta gente que em chegando ao mar, se houvera de sossobrar. E com muito trabalho tornou D. Paulo de Lima a fazer subir alguns para cima, prometendo-lhes que todos os que coubessem se haviam de salvar. E estando o batel em bom estado, se foi pôr por popa da nau, para tomar pela varanda as mulheres que ali iam, os religiosos e os homens fidalgos. Porque a nau dava grandes balanços e houveram medo que metesse o batel no fundo, afastou-se um pouco para fora, e dali se deu ordem para que as mulheres se agarassem às peças de caça, pelas quais dependuradas, se calavam abaixo, e o batel chegava a tomá-las, mergulhadas muitas vezes, com muito trabalho, lástima e mágoa de todos.....................
...........E tornando ao batel. Tanto que começou a viagem acharam-no os oficiais tão pejado, por muito carregado e com todo o grosso debaixo de água, que fizeram grandes requerimentos, que se lançassem algumas pessoas ao mar para que se pudessem salvar as outras; o que aqueles fidalgos consentiram, deixando a eleição deles aos oficiais, que logo lançaram ao mar as pessoas que foram tomadas nos ares, lançadas nele, que ficaram submergidas das cruéis ondas, sem mais aparecerem. Este piedoso sacrifício levou os olhos que o viram tanto atrás de si que ficaram pasmados, sem saber o que viam, ou como coisa que se lhes representava em sonhos. E, posto que estas seis pessoas se despejaram, ficaram ainda no batel 104.”

Edward Leslie, um autor moderno, que tal como Bernerdo Gomes de Brito, publicou uma colecção de casos de sobrevivência em condições extremas**, relata o que se deu em 1974 quando do naufrágio de um pequeno veleiro na costa de ‘Newfoundland’. O dono e capitão do barco salvou-se a si, a sua mulher e a dois dos outros velejadores numa pequena embarcação a remos. Dois outros homens agarraram-se ao barquinho, e o capitão, por mais que o implorassem, não permitiu que subissem para a embarcação. Porque esta não aguentaria a sobrecarga, e sossobreria com o movimento que se daria com a subida de um homem. Os dois homens morreram, e o capitão Labecque foi julgado em tribunal. Foi absolvido.
O problema do sacrifício de uns para salvar a vida de outras é tão antigo como a navegação, e Leslie lembra no seu livro que já Cícero discutira o dilema no seu ‘de officiis”, exemplificando-o com o caso hipotético de dois homens naufragados, tendo entre eles uma prancha que só podia sustentar um deles.
“Será que o homem de grande sapiência, pela virtude do seu intelecto superior tem o direito de empurrar o menos inteligente da tábua e salvar-se a si? Não, responde Cícero. Seria uma acção injusta.
E se o homem em posse da tábua fosse o dono do navio naufragado? Seria ele justificado em empurrar o outro por a tábua ser do seu navio? A resposta também é: não. Ao comprar passagem no navio, o passageiro tem direito a ele.
E no caso de se tratar de dois homens de igual intelecto? Qual o critério da escolha, se um deles tem de morrer para que se salve a vida do outro? Cícero conclui que deve sobreviver aquele cuja vida é mais valiosa, quer pelo seu valor intrínseco, quer pelo que ela interessa ao seu pais. No caso de ambas as vidas serem de igual valor e importância, cntão teria de se proceder ao sorteio.
Os capitães das naus portuguesas não devem ter lido Cícero, e, que o tivessem, a realidade não dava para considerações de ordem filosófica. Nem morais, nem religiosas.

*Historia Trágico.Maritima. Coleccionada por Bernardo Gomes de Brito e publicada em 1736.
**Desperate journeys, abandoned souls.

2 comentários:

JPC 15 de julho de 2009 às 01:03  

Esperemos então que volte ao problema da ilha deserta.
Quanto ao problema náutico em apreço, são realmente dilemas terríveis em situações extremas, sem soluções ideias, nem sequer justas.

Afonso de Albuquerque optou pela sua tripulação, pelos seus compatriotas. Penso eu que por ser perante estes que se sentia, em primeira análise, responsável. Naquele contexto, não serei eu a atirar a primeira pedra ao comandante português e nem colocaria a questão em termos raciais.

Também espero nunca ser colocado perante um dilema do género, de ser obrigado a escolher quem vive e quem morre, "quem vai na jangada"...

Theresa Castello Branco 15 de julho de 2009 às 18:49  

Obrigada pelo comentário, JPC. Estudei bem a Afonso de Albuquerque para o meu livro, e não me espantou que, havendo que optar, ele favorecesse os “alvos”, como ele dizia. Mas não exigiu que outro fizesse por ele a execução. Foi isso que sempre fixei.

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