VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPºVIII PÃO PEIXE VINHO

>> quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016


No capítulo em que São Bento na sua Regra tratava ‘da quantidade das iguarias e qualidade do comer’, o autor especificava o que, em seu entender, devia ser o comer de cada dia. Podia haver a cada refeição - ‘a todas as mesas’ - duas iguarias, ‘pelas infirmidades e fraquezas de muitos, para que o que não poder comer de uma, coma da outra’. Destas duas iguarias, o religioso ou a religiosa escolheria uma, à qual poderia juntar fruta ou um legume, havendo-os. Quanto a carne, não era permitida. Frangos, patos, pombos não eram tidos como carne, e eram tidas como salutares em caso de doença e fraqueza, e eram permitidos e até aconselhados nesses casos. Normalmente, porém, as bases da refeição eram peixe e pão, água e vinho. Dava-se em geral por refeição uma ’peixota’, uma pescada, na opinião da maioria dos autores. Uma pescada média, decerto, ou, talvez outro peixe de médio tamanho quando não havia a obrigatória pescada. Alimento principal era o pão. O pão de trigo, que se foi generalizando com um maior plantio de trigo, com bom fermento designava-se por ‘pão de convento’. Havia o ‘pão raçoeiro’, de trigo e centeio. Havia pães pequenos e grandes de todas as qualidades. Havia os ‘michos’, havia pães redondos, pequenos ou grandes., feitos de trigo e milho, e por fim as broas, só de milho. A distribuição dos pães cabia à tulheira e não era tarefa fácil. As ‘soldadas’ eram em parte pagas em pão, os pães não eram os mesmos para as monjas e os apaniguados, nem os mesmos para todos os apaniguados. A partir da Páscoa e até à festa do Espírito Santo, na Primavera portanto, a ‘comida’ - a principal refeição - era à sexta hora, ao meio dia de hoje, portanto. E assim se continuaria pelo verão fora, tendo em consideração o calor dessa estação. Nos dias de jejum, a ‘comida’ era à Noa, ou seja às três da tarde. Era também a essa hora que, a partir dos primeiros dias de Setembro e até ao princípio da Quaresma, se tomava a principal refeição. Na Quaresma, até à Páscoa, a ‘comida’ era a vésperas, ou seja à tarde, recomendando São Bento que se comesse ainda com luz do dia para poupar a iluminação artificial, para que os ‘que comerem não tenham necessidade de candeia’
">As religiosas tinham pois por dia uma única refeição forte. Podiam comer fora de horas algum bocado do pão que lhes era distribuído, mas só se sentavam à mesa uma vez por dia, para a refeição forte, ‘a comida’. Gradualmente passou a ser usual e permitido haver uma segunda refeição sentada no fim do dia, distinguindo-se a partir daí entre ‘comida’ e ‘ceia’.
De mosteiro para mosteiro, e de Ordem para Ordem, as expressões usadas para as refeições e horas delas podiam variar. Na tradução para português da Regrade São Bento feita por Frei Tomás do Socorro, lê-se: ‘a hora da ceia ou da comida’, dando a ambas as designações o mesmo significado. Nas constituições das freiras de São Domingos, traduzidas no século XV, lê-se, que a sacristã tocaria a campainha ‘antes do jantar ou da ceia à hora convinhal’, e que logo se davam ‘as coisas necessárias para refeição das irmãs’. À pequena porção de comida que se dava em tempo do jejum, designava-se por ‘colação’: ‘No tempo do jejum, à hora conveniente, faça a sacristã sinal para a colação’.
Em certos dias havia uma melhoria no volume das refeições com ‘pitanças’ legadas por devotos do mosteiro. Eram legados com condições devidamente refustadas. Designavam-se por ‘pitança’. Em 1241 a abadessa de Lorvão e seu convento comprometem-se a comprar uma propriedade no valor de 200 aureos, ‘áureos vetens’, que lhes deixara a rainha D. Branca para que, com os rendimentos dessa propriedade, tanto elas como as suas sucessoras, pudessem ter ‘pitança’ de pão e vinho e peixe fresco no dia de seu aniversário, ‘bono pane et vino et piscibus recentibus’.Houve muitas dessas pitanças, e sempre mais do mesmo: mais pão e mais peixe.

A Regra partia do princípio que q comida dos monges - e portanto as monjas, que haviam adoptado a mesma Regra - deviam comer à mesma mesa a sua refeição. Nos mosteiros femininos o costume não tardou a mudar. A Regra autorizava, como se leu, duas iguarias em todas as mesas, para que aqueles que não podiam comer certa iguaria, pudessem escolher outra. Com esta consideração ia ser dada uma das primeiras machadadas na tão apregoada vida em comum. Em alguns mosteiros seria criada uma divisão separada – uma ‘misericórdia’- na qual comiam as monjas, que por razões de saúde tinham comida mais substancial ou mais delicada. A partir daqui nasceu a ideia da divisão das religiosas em pequenos grupos, comendo separadas mesmo sem razões de saúde, e que cozinhavam para si as suas próprias refeições.
 
A opção da comida separada, em vez da refeição em comum, não se explicava só pelo muito humano desejo de mais privacidade, porque a ser essa a razão, as monjas teriam conseguido o relaxamento da vida em comum também no dormitório. Onde isso mais tarde também se viria a dar, mas nunca como na comida. As aristocráticas filhas de família que professavam em Lorvão estavam mais que habituadas a dormir com uma ou mais mulher no mesmo quarto. Em suas casas não se fazia outra coisa, privacidade era coisa que não havia nas casas, grandes ou pequenos. Dormir em comum não era sacrifício. Duro era ter de comer comida cozinhada para muitas bocas, fatalmente menos cuidada do que os cozinhados feitos para duas, três, ou mesmo quatro pessoas. E, mais difícil que tudo, era o ter de aturar os hábitos de comer menos cuidados de uma ou outra companheira. E assim, pouco a pouco, foi-se instalando entre as monjas o hábito de cozinhar e comer separadamente. Foi hábito que por toda a Europa os visitadores e reformadores se esforçaram por erradicar, mas com pouco êxito. E por vezes causando revolta declarada, como a das monjas do mosteiro de Wenningen perto de Hannover na Alemanha, onde, em 1455, as monjas se revoltaram por as quererem a obrigar a comer em comum. Algumas entregaram, relutantemente os pratos, copos e facas e os utensílios de cozinha próprios, mas outras ‘deixaram cair os pratos para os partir’.5

Em Lorvão a coisa foi menos belicosa. Em 1534, respondendo aos reparos do visitador, que não se habituava àquela flagrante quebra da Regra, as monjas alegariam que não podiam comer em comum, porque o mosteiro não tinha pessoal suficiente para o efeito. O visitador, cansado de bater sem efeito na mesma tecla, desistiu de impor o impossível, e descarregou’ a consciência, e a de ‘dona abba e monjas e religiosas’ permitindo o novo hábito. Causando um trabalho insano à celeireira e às suas oficiais. É que as monjas recebiam não só quantidades definidas em pão, peixe e condimentos para os seus cozinhados, como essas quantidades diferiam conforme as datas em que eram dadas.

Acerca das mesas às quais se sentavam os pequenos grupos de monjas, há uma curiosa recomendação por parte de um visitador. Exigia ele que as mesas fossem redondas. Com o que se eliminavam as cabeceiras, o que evitava as questões de precedência, a discussão de quem tinha mais direito à cabeceira e à presidência da mesa, e quem ficava à sua direita e esquerda. Na linguagem monástica nasceu também uma nova e mais elegante expressão para designar o local das refeições. O refeitório passou a ser designado por ‘sala de jantar’ Em 1536 as monjas de Lorvão assinam um documento em a ‘sala de jantarem’.

 Os cozinhados individuais permitiam a inspiração, criavam-se variantes com os mesmos elementos, e tentavam-se novas combinações. Deve ser o resultado de uma dessas experiências o caldo qual se conservou a receita, que as monjas de Lorvão tomavam na Sexta-Feira-Santa. Fazia-se com 4 alqueires de tremoços, alqueire e meio de grão e alqueire e meio de ameixas. Ou seja, aproximadamente, 2 kg de tremoços 750 g de grão e 750g de ameixas.

Houve que esperar pelas Descobertas para conseguir combinações mais atrativas, mas antes disso já se tinha conseguido variar a monotonia de pão, peixe e conduto, fugindo à Regra dentro da Regra. Havia dias de consoada em que a comida era especial,
Já só existem livros de contas do século XVII, os mais antigos sendo gradualmente destruídos, mas os usos pouco mudavam nos mosteiros, e o que se usava a em matéria de consoada no século XVII não diferia decero do que se dava nas mesmas ocasiões nos anos anteriores. Os dias de Jejum - que não eram poucos do ano religioso - eram compensados com uma consoada, uma ligeira refeição à noite. No austero mosteiro da Madre Deus em Lisboa, as religiosas gabavam-se de consoar com ‘dois bocados de pão e umas folhas de hortelã’6 . Em Lorvão era-se menos frugal. Nos meses de Junho e Julho compravam-se grandes quantidades de cerejas para as consoados dos dias de Santo António e São João. O “Livro da Mordomia” de Lorvão do ano de 1659 diz que para as consoadas das vésperas de Stº António, S. Joâo Baptista, e da Visitação, e merenda de Stª António’, se tinham comprado nesse ano 735 arráteis de cerejas.

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