VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº IX COLHER OS FRUTOS

>> quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Bispos e visitadores fulminavam constantemente contra as excessivas saídas das religiosas, por muito úteis que fossem, e, em 1299, o papa Bonifácio VIII, farto de tantos passeios, emitiu uma bula rigorosíssima, a bula ‘Periculoso’, na qual Sua Santidade apontava, como o título indica, os perigos que as monjas incorriam com as suas frequentes quebras de clausura. Proibia-lhes dali por diante praticamente todas as saídas fora dos mosteiros. A coisa não agradou. No seu livro ‘Medieval English Nunneries’, sobre os mosteiros medievais ingleses, Eileen Power relata o caso das monjas de um mosteiro da diocese de Lincoln, que se recusaram a aceitar a referida Bula. Pretendendo o Bispo depositá-la no mosteiro, as monjas perseguiram-no até à porta, gritando que nunca cumpririam semelhante Bula, e acabando por lançar o documento à cabeça do infeliz prelado. E por toda a parte as monjas continuaram saindo fora do seu mosteiro, encontrando para isso as mais variadas ‘ocasiões de manifesta necessidade’. Em Lorvão algumas das oficiais do mosteiro, como a prioresa e a celeireira, tinham frequentemente justificadas razões para sair do mosteiro. Apesar do mosteiro ter procurador para lhe tratar de negócios no mundo, havia sempre casos que não dispensavam, achavam aquelas senhoras, a presença de uma oficial do mosteiro. Em 1427, a então prioresa, dona Catarina Aires Coelho, vai à Vacariça em substituição de dona Abadessa, protestar contra a construção de uma ermida em terreno que era do mosteiro. O procurador delas já protestara, mas sem resultado. Pelo que a dita prioresa, dona Catarina foi em pessoa tratar do caso. A ermida estava a ser construída por ordem do bispo de Coimbra, disseram os homens que ali estavam trabalhando. O Bispo requeria para si as esmolas e ofertas que ali levavam os romeiros. A prioresa declarou que só permitiria aquela construção, se as benfeitorias revertessem a favor do mosteiro. E logo mandou retirar de lá alguns ‘vendeiros’, que já se tinham instalado no terreno. A celeireira, tendo a seu cargo o armazenamento e a distribuição de tudo quanto era preciso para a padaria e para a cozinha da comunidade, não podia ficar em casa quando a entrega dos géneros demorava. Ia em pessoa a Botão, à quinta que o mosteiro ali tinha, para ver o que se passava com o trigo, lá armazenado que não chegava a tempo a Lorvão. E os legumes e frutas que não vinham a tempo ou em quantidade. A Ordem de Cister, que recomendava aos seus monges os trabalhos no campo, não previra mosteiros femininos, e que as suas monjas viessem a fazer o mesmo que os monges. Não sucederia em todos os mosteiros, mas em Lorvão - com ou sem aprovação da Ordem - as monjas ocupavam-se em trabalhos agrícolas. Não lavravam, semeavam ou plantavam, mas colhiam frutos, e recebiam rendas em frutos do campo. Os mais completos testemunhos encontram-se nas actas notariais tocando a casos de litígio. As partes litigiosas levavam consigo o seu tabelião, que registava no próprio local o que via e ouvia., não omitindo o mais pequeno pormenor. Notavam a assistência deste e daquele, e o que cada um dissera, e a quem acusara. Se uma monja estava presente, isso era devidamente anotado. Um desses documentos, datado de 1321, trata da disputa entre o mosteiro de Lorvão e Lourenço Pais de Molnes sobre a posse de uma almuinha no local da Varzea, junto de Coimbra. Pelo mosteiro testemunharam uns homens que possuíam terra junto dessa almuinha Estes homens declararam ao tabelião, que havia já um ano que eles viam a dita almuinha ser lavrada com os bois da senhora abadessa de Lorvão, que gente dela tinha lá semeado linho canave (sic), e que depois tinham visto ali ‘Tareija Vasques de Azevedo e outras donas, monjas do dito monasterio, e frey Martim Leal’ lavando linho: ‘Qoe lhes viram ende lavar linho para o dito monasterio’.8 Outro documento notarial, esse de 1348, dá conta da presença de duas monjas num local chamado Ouriães. Lorvão achava-se com direito a certo trigo proveniente de um casal que o mosteiro ali tinha. O facto era contestado pelo então Prior do Hospital, e Lorvão resolvera agir. Consequentemente, no dia 19 de Julho de 1348, duas monjas suas apresentaram-se em Ouriães acompanhadas de tabelião. Nesse dia, anota este, jazia trigo debulhado na eira com a palha tirada. Dona Maria Fernandes e Branca Martins, monjas professas do mosteiro de Lorvão, estavam na eira, e declaravam estar na dita eira para fazerem limpar o trigo, que era ração do casal que era do mosteiro. E que o caseiro, Gonçalo Domingos, lavrava e ‘trazia da mão da abadessa e convento do dito mosteiro’. Elas ali estavam, diziam as monjas, para levar o dito trigo do dito casal ‘como seu’. As Donas declaravam ainda, que havia dias que estavam na dita eira, ‘que já tinham partido o trigo em freixes com o dito caseiro, e que, em nome do convento e da sua abadessa, tinham tomado trigo do casal, comido dele, e o vendido. Prova de posse, portanto.

Ora, relata diligentemente o tabelião, ‘estando elas assim na dita eira e casal’, chegou Pero Lourenço, que se dizia escrivão, tabelião e procurador do Prior do Hospital. Vinha acompanhado de nove homens com armas, ‘convém a saber: lanças e arcos e espadas e cutelos’ Um deles trazia uma besta e a sua espada’. O dito Lourenço declarou que estava ali como procurador do Prior do Hospital, para tomar o casal e a eira que era do Prior, que vinha ‘filhar o dito pão do dito casal e ração dele para o dito prior, que dizia que era seu’. E ‘logo o dito Pero Lourenço, e os outros que com ele andavam, filharam forcas e uma pá e começaram a limpar o dito trigo que jazia na dita eira’. Ora, escreve o tabelião de Lorvão, as duas donas ‘estavam ‘na dita eira em cima no dito trigo’ Uma delas, Branca Martins, tinha uma forca na mão, ‘assomando no dito trigo com ela’, dizendo ao dito Pero Lourenço e aos seus homens, ‘que não fizessem força nem mal’, acusando-os de virem armados ‘fasendo assuada sobre elas’. Pero Lourenço ripostou que eles não vinham para lhes fazer mal, nem desonra, que estavam ali porque aquilo era herdade do Prior, e que tinham ordem para ‘partir pão e levar a ração dele para o dito Prior, e que os ditos homens eram do dito Prior e comiam seu pão e sua carne’. Dito isto, Pero Lourenço avançara resoluto sobre a monja que segurava a forca. ‘E logo o dito Pero Lourenço travou da forca que a dita Branca Martins tinha na mão, de guisa que, entre ele, e os outros que com ele andavam, ‘lha tiraram da mão’. Puxando cada um para seu lado, Branca Martins caiu em terra: ‘tirando eles por ela para uma parte, e a dita dona para outra, de guisa que a dita dona agoelhou em terra’.Pero Lourenço e os outros homens do Prior começaram logo a varrer o trigo, e a pô-lo em montes. AS monjas não se davam por vencidas, trepando de novo para cima do trigo. Pero Lourenço também voltou à luta: ‘travava da mão da dita Branca Martins, tirando-a de cima do dito trigo’, declarando que não permitiria que as Donas levassem dali trigo ou qualquer outra coisa. E foi carregando o trigo que conseguia varrer. Depois do dito Pero Lourenço ter posto o trigo que conseguira varrer em cima das suas bestas e de o ter levado, as sobreditas dona Maria Fernandes e Branca Martins ficaram na dita eira, sentadas em cima do trigo, declarando ‘como ficavam em posse do dito casal, e do dito trigo, que era ração dele’. Depois fizeram-no limpar e medir, e mandaram-no a um tal Lourenço Soares a quem o tinham vendido. Branca Martins foi em seguida a um lugar ali perto, onde havia nogueiras e figueiras e um castanheiro, que as monjas diziam serem também pertença do casal que era do mosteiro. Gonçalo Domingues, caseiro, confirmou que assim era. E então escreve o tabelião, Branca Martins, pegou em nozes, figos e folhas de parreira, ‘filhou das nozes das ditas nogueiras, e figos lampos em uma figueira corval (sic), e ramos de castanheiro, e argaço de uma parreira que estava em uma figueira’, e declarou que filhava aquelas coisas porque eram do dito casal, e por isso do mosteiro, que as usava e possuía pacificamente. Por fim as ditas dona Maria Fernandes e Branca Martins ainda foram à casa onde morava o caseiro, disseram-lhe que ele bem sabia que ele há muito tempo - ‘grã tempo havia’ - tinha casa e casal da mão da abadessa e convento do mosteiro de Lorvão, a quem pagava foro e ração. Agora sobreviera homem da parte do Prior do Hospital para lhes tirar o casal, mas elas sabiam que estavam no seu direito e ali mesmo ‘revestiam na dita posse do dito casal o dito Gonçalo Domingues’. Este confessou ser verdade, que o casal era de Lorvão; que há muito tinha sido encartado a ele e a seu pai pela abadessa e convento de Lorvão, e que eles ‘de sua mão ficavam e queriam ficar revestidos’. O tabelião anotou-o, e o documento foi testemunhado por homens de Penacova, da Reboleira e de outros sítios, que ali se encontravam. Dona Maria Fernandes, a quem o tabelião tem o cuidado de nomear sempre em primeiro lugar, e que, mesmo sentada em cima do trigo não largara o Dom, e a aguerrida Branca Martins puderam regressar ao seu mosteiro, conscientes de missão cumprida. Estes e outros documentos dão a entender a forte ligação das monjas de Lorvão à faina agrícola. Longe da cidade e dos mexericos citadinos, que penetravam mesmo através das fortes portas dos mosteiros, o interesse das monjas de Lorvão centrava forçosamente no cultivo da terra. Ao tomarem conta do mosteiro as primeiras monjas tinham encontrado um modo de vida de proprietário rural, que muito naturalmente adoptariam. Muitas delas eram filhas de proprietários de terras, conheciam os altos e baixos do ano agrícola. A alternância das sementeiras e das colheitas, a influência dos elementos sobre a produção do trigo, do vinho, do azeite, coisas vitais para o mosteiro, para as suas próprias pessoas contribuíram talvez para dar às monjas de Lorvão uma arma contra a ‘accidie’, que a monotonia da vida monástica podia provocar, e comprovadamente frequentemente provocou.

0 comentários:

Sobre este blogue

Libri.librorum pretende ser um blogue de leitura e de escrita, de leitores e escritores. Um blogue de temas literários, não de crítica literaria. De uma leitora e escritora

Lorem Ipsum

  © Blogger template Digi-digi by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP